A anatomia de um sonho

A anatomia de um sonho

«Declaro-vos marido e mulher». Sentado no átrio da igreja, esperava ouvir o coro de
contentamento típico destas ocasiões, afinal, caros leitores, a Virinhas casara-se! Mas o que
recebi foi um silêncio opaco, seguido de murmúrios espantados. Intrigado, dirigi-me à porta –
mero instinto. Quase embati na Dona Laurinda, pálida e de olhos arregalados, como que
perseguida pelo demónio. Segui-a com o olhar até se tornar um vulto disforme na direção da
casa do Manca-Mulas. A curiosidade saltou que nem uma mola. Por entre cabeças, desabafos
e abanicos, vislumbrei o altar-mor. Benzi-me por respeito e sorri por satisfação. Afinal, como
era possível? Virei costas e regressei ao banco que, tal camarote, me daria uma visão
privilegiada do que seria o desenlace.
Perdoem-me, caros leitores. Para não desorientar os menos conhecedores, talvez seja
aconselhável começar pelos bastidores desta reviravolta teatral, que teve lugar numa aldeia
transmontana.

*

Apesar de ter vivido mais de meio século no bulício citadino, nunca esqueço que sou
filho desta terra. Sempre fui visitante frequente; hoje sou hóspede permanente nos meses de
verão.
Este ano, quando cheguei com vontade de desfrutar da tranquilidade campestre, a
aldeia andava num rebuliço. Não demorei a saber que a Virinhas iria casar, apesar do que
acontecera. Eu percebia a razão de tamanho espanto. Desde há muito que todos se
alimentavam dos azedumes entre duas famílias.
A Virinhas, Oliveira de apelido, ficara órfã e fora criada por uma tia-avó, mulher
solteira, rígida e conservadora. Aceitara aquela missão de mãe, sem dores de parto, e jurara
fazer da sobrinha uma mulher de respeito. Depois de completar o sexto ano de instrução, a
Virinhas não quis estudar mais. Dedicou-se à lavoura: aprendeu a rotina das sementeiras, a
tratar dos animais e até a regatear os preços das uvas na adega. Mulher de braço firme e
determinação de ferro! Quando a tia-avó morreu, herdou o que era seu por direito, bem como
a relação desavinda com o Manca-Mulas, Carvalho de apelido, homem rude e autoritário. Ele
nunca perdoara à família Oliveira por ter comprado umas terras, junto ao ribeiro, o que o
impedira de expandir os seus domínios. A partir daí, nasceu uma desavença que nem o
nascimento do filho Henrique amainou. Virinhas e Henrique, quase da mesma idade,

tornaram-se colegas de escola. A convivência proporcionou a amizade às escondidas, sem
que pai e tia-avó suspeitassem.
O tempo percorreu meses. A maturidade desbravava as suas mentes e os dois, jovens
adultos, decidiram que poriam fim a tão fútil desentendimento. Nessa altura, Henrique
completava o mestrado em artes plásticas no Porto. Idealizava gerir a quinta do pai, enquanto
daria rédea larga à sua criatividade. Fizera amizades excêntricas: o seu melhor amigo, um
especialista em efeitos especiais, fora conhecer a aldeia disfarçado de cinquentão sem
ninguém se aperceber do disfarce. Só a Virinhas sabia destas artimanhas, pois, mais tarde,
acabaria por mo confidenciar. Sempre que visitava o povoado, o Henrique passeava com a
Virinhas pela praceta, numa afronta que entusiasmava todos e indignava o pai. Tal como uma
erva daninha, o rumor floresceu. Todos desconfiavam que eles se deixaram apanhar no
enredo da paixão. As opiniões divergiam sobre as consequências.
— O Manca-Mulas anda com ar de Mafarrico. Nunca vai aceitar — asseguravam uns.
— E porque não? Os jovens querem lá saber de desavindas do antigamente —
argumentavam outros.
Eu assistia aos desenvolvimentos desta história com a regularidade que as visitas me
permitiam. No verão passado, percebi que Henrique e Virinhas conviviam sem qualquer
pudor. Cruzei-me com eles junto ao canastro. Entretidos a desfolhar um malmequer, talvez a
acertar as agulhas do destino, cumprimentaram-me. Nem tive tempo para retribuir, pois uma
voz aziaga ecoou de uma esquina. Afastei-me, não por medo, mas porque em questões de
família nem colher nem outros utensílios. O Manca-Mulas espumava, virado do avesso e sem
cerimónias no palavreado. Embora eu pretenda ser fiel à história, é impróprio reproduzir os
insultos e ameaças disparadas pelo canhão bocal do homem. Resumo o que aconteceu a
seguir. Henrique regressou ao Porto sem se despedir e Virinhas refugiou-se em casa.
Raramente se mostrava, mas, quem a via, comentava as olheiras, uma tristeza na alma que a
devorava.
Este ano, pela primavera, precisei de ir à aldeia para fiscalizar as obras do telhado na
minha casa. Como coincidiu com a feira do gado na cidade vizinha, decidi passar por lá.
Entre estábulos portáteis e fardos de feno, avistei a Virinhas. Surpreendi-me com o ar
obstinado desenhado nas sobrancelhas erguidas. Preparava-me para a saudar, quando o
Manca-Mulas, com uma gargalhada trocista, escarrou para o chão, frente a ela. A Virinhas
encarou-o. Vestida de uma altivez pouco familiar, devolveu-lhe um sorriso feroz. Olhei para
o Manca-Mulas, preparado para serenar o ambiente, mas o que vi foi receio. Incrível, pensei.

Nessa noite, no café, só se falava do incidente na feira. Tentei perceber o que
acontecera enquanto estivera ausente. Disseram que o Henrique não visitava o pai há meses.
Telefonava-lhe para saber da saúde e pouco mais. A Virinhas também seguira caminho, sem
lamentações. Imaginem que até aparecera com um homem elegante, de bons modos, mas
pouco dado a convívio. Todos concordavam que era menos formoso do que o Henrique, uma
vez que no seu rosto, decorado por uma barba farfalhuda, ressaltava uma verruga na narina
esquerda. Passeavam, visitavam os terrenos e até tinham ido à missa. Ninguém ousou fazer
perguntas, pois não previam a reação da Virinhas. O brilho que ela emanava prendia os
menos precavidos. E assim, sem grande surpresa, o casamento foi marcado para agosto. Toda
a aldeia fora convidada, salvo Henrique e o Manca-Mulas, como compreendem.
Quando cheguei em finais de maio, a rotina aldeã decorria ao sabor de um verão
antecipado. Poucos dias depois, a Virinhas fez-me uma visita. Conversámos sobre
banalidades, antes de ela me convidar para o casório, citando o seu palavreado. Notei-lhe
uma felicidade genuína e, num ímpeto, perguntei-lhe se esquecera o Henrique. Retorceu os
dedos, antes de me presentear com as seguintes palavras: “O medo amordaça e tolhe os
sonhos frágeis, mas nunca os que estão envoltos pelo manto da vontade e do acreditar”. No
imediato, não atingi o alcance daquelas letras, conjugadas em palavras que destilavam
sabedoria. Aceitei o convite e aguardei pelo tão extravagante dia.

*

Caros leitores, voltamos ao início desta história. Se bem se recordam, sentei-me no
banco, espectador de primeira fila para o desenlace. “Marido e mulher” foi o mote e, assim,
as gentes abandonaram a igreja. Cochichavam entre si. Muitos deles felizes, quase nenhuns
apreensivos. Comentavam a coincidência de os convidados do noivo não aparecerem, nos
seus carros citadinos, os homens de fraque, a lembrar louva-deus enlutados, e as senhoras de
vestidos compridos, género esfregonas andantes. Pensativo, relembrei as palavras da Virinhas
sobre os sonhos, mas optei por apreciar o cortejo aldeão a preparar-se para o confronto.
Todos nós aguardávamos o casal, frente à igreja. Os noivos estariam a assinar os
papéis na sacristia. O padre, com certeza, não se juntaria à multidão. Afinal, teve o papel de
encenador! Foi então que pressenti o toque da bengala na escadaria que dava para o átrio. A
multidão fez alas e o Manca-Mulas posicionou-se frente à entrada da igreja. Incrédulo,
passava, com um olhar de laser, por todos os rostos à procura de confirmar o que a Dona
Laurinda lhe denunciara. Confesso que, naquele instante, entendi por que razão comemos

tantas pipocas, quando assistimos a um filme. A tensão entranha-se de tal forma que a
subconsciência mecaniza o movimento. Seria muito pior se comêssemos pedacinhos de bacon
frito!
A falsa serenidade quebrou-se com o roçar do vestido e a batida de sapatos altos. No
peito de cada um de nós um tambor rufava. Pouco depois, o Manca-Mulas aproximou-se para
ver melhor. Esfregou os olhos. No alto da entrada, a Virinhas apareceu, feliz, de mãos dadas
com o Henrique que segurava, na mão esquerda, a barba farfalhuda. Largou a mão da
Virinhas e retirou a falsa verruga do nariz. O Manca-Mulas não reagiu. O povo uniu-se no
silêncio e eu pensava, caros leitores, em como os sonhos são reviravoltas da vida!

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AUTOR(A)
Inês Pinto

Inês Pinto nasceu em Vila Real a 30 de janeiro de 1979. Foi nesta cidade, onde vive, que se licenciou em Ensino de Inglês-Alemão na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. É professora do terceiro ciclo e ensino secundário. A leitura foi sempre uma paixão e, por isso, o fascínio pela escrita surgiu naturalmente. Escreveu pequenos textos para o jornal da escola e algumas histórias por mero prazer. Em 2020 participou numa formação de escrita criativa que a despertou para o mundo das palavras. No Natal de 2020, venceu um concurso de contos de Natal, iniciativa de um jornal local. Continua a participar em formações para aperfeiçoar a escrita e realizar o sonho de escrever livros. Este é o seu primeiro conto publicado.

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