Autor(a):

Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho

A Consciência Também Chora

Ele ainda não sabia que o corpo estava perto do fim e a alma a caminho do precipício. 

O azul dos olhos foi substituído por dois focos de luz que permitiam estudar a escuridão. Para onde quer que dirigisse o olhar a luminescência difusa iluminava a presença da sua sombra, desmaiada aos pés. Era fortemente pontapeada, mas não fugia como cão escorraçado. 

Vidrou-se com o silêncio. Não havia sinal de vida, somente o assobio da sua respiração entrecortava o espaço quadrado e castrador. Rodeado por um muro alteado a pouco mais que a sua cintura conseguiu distinguir garrafas, copos com fundos ressequidos e cacos de vidro, dispostos ao longo do parapeito.

O nariz dele contorceu-se com a bílis impregnada na pele. Era a sua única companhia. Subiu o pequeno degrau que dividia o espaço e entrou no que lhe pareceu ser uma sala contínua. Baixou a cabeça e a luz, movendo-se síncrona com a visão, iluminou os pés descalços que ardiam sobre a fria tijoleira.

Olhou para cima, enxergou uma parede que se afunilava para lá do que a visão permitia alcançar numa boca aberta sob o céu estrelado. Os lábios trocaram movimentos, balbuciaram vacuidades impercetíveis. Porque o vazio não comunica, deixa-se estar qual intruso rastejante num buraco negro. Num silêncio funesto.

Agora transpirava e os tremores investiam contra ele. Ainda não descobrira a porta de saída. Sobressaltou-se no momento em que o braço direito roçou um balcão pestilento, vestido de espelhos marcados pela humidade, que refletiram um Ismael curvado. Descaiu as pálpebras evitando a imagem devolvida. Todo o homem se transforma, pensou. São pequenos devaneios, uns por desejo outros por desprezo que conduzem o futuro e o modo como este se desenrola. 

Coçou o braço, o pescoço e uma perna a um ritmo rápido e doloroso. No jovem morava uma comichão canibal, nascida num sangue impuro onde a dependência se igualava às manchas das paredes que cresciam no espaço como trepadeiras. 

As lágrimas começaram a soltar-se. Talvez a esperança se insubordinasse pelo choro. Afinal quem nada tem nada pode dar, talvez ainda não fosse um poço seco.

Remexeu-se dentro do macacão esverdeado. O tecido pesava-lhe nos ombros, sugerindo que até este dispensava a convivência. Só poderia estar num sonho. Há quanto tempo não se trajava assim.

Uma das lágrimas caiu no chão, devolvendo limpeza e brilho ao soalho no local onde agora secava. Ping, ping, ping, ping, seguiam-se uma atrás da outra. À medida que caíam, o espaço começava a luzir. Com a palma da mão formou uma concha reunindo fé em formato de gotas, lançou várias contra uma mancha fétida na parede, limpando-a. O espaço aclarou. Se não tivesse sido o forte prurido que lhe nasceu junto aos hematomas do braço, não teria despertado.

Levou alguns minutos a perceber onde estava deitado. O espaço era familiar, mas parecia-lhe coisa do passado. Lambia a língua encortiçada, tentando descobrir a presença do próprio corpo, quando viu uma manta tapando a miséria de pernas, a antítese dos troféus ordenados na prateleira do antigo quarto. «Campeonato regional, primeiro prémio,1996. Oeiras Open,1997. Hungria, Espanha, França: Primeiro lugar…» Prémios que marcaram anos de bate-bolas, pés enfiados em pó de argila, que tingiram a inocência de Ismael de laranja. Depois veio a pressão, duelos que saquearam a juventude, viagens longas, camas alheias ao destino, ataques de fúria incompreendidos. Uma raquete enfiada por um crânio adentro. Uma morte! Uma primeira prisão, que se tornou num encarceramento repetido e sem retorno. 

 Naquele final de tarde, que oferecia um vento rubro do lado de fora da janela, os prémios traziam consigo uma mistura de desgosto e desilusão. Há uma certa nostalgia quando se pensa na infância. Memória do passado que nos diz quem fomos, quem desejávamos ser e no que nos tornámos.

O pulso latejou junto da tatuagem de arame farpado feita contra vontade. Recordou o dia em que enodoou o corpo sujeitando-se a um grau de perigosidade e submissão elevado. De cada vez que a engenhoca artesanal, controlada pelos companheiros, se introduzia debaixo da epiderme, lambuzava-se na fragilidade humana; «maricas! Sobrevivem aqueles que se adaptam», lembrava-se de ouvir alguém dizer no meio de gargalhadas.

Observou os pés destapados, com máculas arroxeadas entre os dedos e encolheu-se para os esconder de si.

Chegava da cozinha o som da água corrente, os passos arrastados da mãe, o abrir constante da porta do frigorífico. Vozes provenientes do rádio falavam de um Deus prometedor «Comerás livremente o fruto de qualquer espécie de árvore que está no jardim; contudo, não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres com toda a certeza morrerás!»

A mensagem condenatória fazia crescer um ímpeto de cólera. «Promessas! Promessas! Tantas promessas! Qual morte qual quê?!» — pensou.

 Levantou-se estonteado, pronto para entrar de rompante na cozinha e calar a língua bifurcada que invadia os ouvidos da mãe. Por entre a porta entreaberta, vislumbrou-a adormecida em palavras bíblicas, mal a reconheceu tão pequena, contida naquela carcaça grisalha. Cortava legumes, controlando com perícia o movimento da faca. Para Ismael, colocar o futuro nas mãos de Deus não era rentável, limitava-se a ser um estado de espírito de gente medíocre.

— Ó filho, não te ouvi chegar. Senta-te! — pediu, enquanto arrastava uma cadeira. Sentou-se!

— Parte-me o coração ver-te assim. — colocou a mão sobre a do filho, numa espécie de carícia constrangedora. Identificou-o como um momento importante, porém, para o filho o ensejo não chegou e continuou de expressão baça e desafiante.

— Ai Senhor, quem me dera conseguir dizer-te o quanto sofro sempre que olho para ti. Meu rico filho, no que te tornaste. Aí, se o teu pai fosse vivo… seriamos dois a sofrer! — concluiu ainda de faca na mão.

— Sim, de certeza que está a esgravatar o caixão da mesma maneira que fez com a minha vida. 

Ali estava, um violino interior de cordas danificadas que deformava as notas todas as vezes que se aludia ao pai. 

— Preciso de dinheiro! Dá-me algum.

— Não tenho…não te posso dar! — reformulou.

A certeza da mãe fê-lo semicerrar os olhos. Na cabeça dele existiam três tipos de raiva: a raiva da ignorância, a do abandono e da cobardia.

Em cima do móvel, a namoriscá-lo, a carteira da mãe. Segredava-lhe ao ouvido palavras obscuras e ousadas.

Ismael sabia que a consciência não fazia parte da sua existência. «Se o cérebro é consciência e se a consciência é existência, quem serei eu?» Pergunta tão ingénua que se fosse um gesto seria um «faz figas» antes de se atirar de um penhasco.

— Como queiras! Ainda te vais arrepender por seres igual ao outro e não me ajudares.

Afogou-se numa infeliz rebeldia e pegou na carteira num movimento tão rápido quanto aquele que o corpo permitiu. 

Que pena miúdo, as drogas levaram o teu melhor! Sim, aquelas a quem tratavas por tu e que rapidamente domaram o teu espírito. Contra o exército de vozes presentes da mãe, do pai morto, do pastor evangelista que continuava a apregoar eufórico, fugiu. Abriu a porta de casa e nem a advertência do gemido escandalizado das dobradiças o impediram. Fugiu da vergonha. Correu dali para fora!

Num resquício de arrependimento sentiu a carteira pesar o dobro daquilo que pesava. Será que a honra teria peso? Estaria também ela elucidada sobre o conceito de consciência? 

Pobre Ismael que se sentiu glorioso e louco o suficiente para considerar que possuía a liberdade refundida nas mãos, assim que a porta se fechou no seu encalço.

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AUTOR(A)
Cláudia Passarinho
Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho nasce no ano de 1980, em Lisboa, é a quarta geração a residir numa vila Lisboeta por onde tantos escritores já passaram. Licenciou-se em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada em 2004, tendo posteriormente completado uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos.

É casada e mãe de dois filhos. Da sua família sacia o amor, a união e a força para os seus projetos.

É nas páginas dos livros que encontra refúgio e será através das suas palavras que procurará deixar um legado. Conta com a participação em várias coletâneas e revistas digitais, enquanto contista. É co-fundadora do podcast «Livros a três» e desenvolve um papel ativo em projetos de formação de Escrita Criativa e na divulgação da importância da leitura.

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