O Conselheiro real, um homem idoso sempre sensato nos conselhos dados ao longo da sua vida, observava o monarca com uma mistura de preocupação e paciência. Achava natural ele estar nervoso, pois aproximava-se o dia da coroação. Viera lembrá- -lo disso mesmo.
— Vossa Majestade parece-me não estar muito feliz com a ideia de usar a coroa que pertenceu ao seu falecido pai e a outros seus antepassados, mas… — disse, quase em segredo.
O rei interrompeu-o colocando-lhe a mão à frente, num gesto de desagrado.
— Não é nada disso! Não venhas com a conversa de tradição, simbolismo e sei lá mais o quê. Essa coroa não é adequada para mim.
— Mas, Vossa Majestade, esta cerimónia é muito importante para os seus súbditos. Que diria o rei seu pai?
— Não quero ouvir mais!
Dizendo isto, o rei apontou para a porta de saída dos seus aposentos e o Conselheiro saiu, cabisbaixo.
O monarca começou a andar de um lado para o outro, muito agitado. O manto de veludo adornado de bordados arrastava-lhe pelo chão. Quase tropeçava. O suor escorria–lhe pelas mangas largas e compridas da túnica de seda. Deitava as mãos à cabeça, despenteando os finos caracóis longos e alourados.
— Não pode ser, NUNCA irei usá-la no dia da coroação. Afinal, sou o rei. Eu decido — vociferou, batendo com um punho na mesa mais próxima.
Exausto, sentou-se na cadeira de espaldar alto. Limpou o suor da testa e mandou chamar o camareiro-mor. Este chegou daí a pouco, fazendo uma vénia. Acompanhava-o desde pequeno e estava habituado às suas teimosias.
— Vossa Alteza Real parece não estar bem. Não será melhor chamar o físico- -mor?
- Não preciso de físicos. Preciso de auxílio num assunto urgentíssimo.
Esperam que, no dia da coroação, coloque na minha cabeça a coroa usada por meu pai, meu avô e outros antes dele. Mas eu NÃO QUERO, é muito ᑭᕮᔕᗩᗞᗩ
— Vossa Majestade tem a certeza?
— Que disseste? Como ousas contrariar-me?
— Perdoe-me, Vossa Majestade. Estava a pensar no dia da coroação de seu pai. Lembro-me da sua cara quando pegou na coroa. Ainda era criança.
— Era criança e agora sou adulto! E sei bem como é pesada. Há outras coroas. Por que razão não posso escolher outra?
— Eu…
— Chega! Não quero aquela ‘coisa’ na minha cabeça e não vale a pena tentares convencer-me. Tens três semanas para arranjar uma coroa igualzinha, mas mais leve. E penso não ser preciso lembrar-te: tem de ser tudo feito em segredo. Sabes bem quais os castigos por traição.
Agora era o camareiro-mor quem transpirava. Aquele pedido era demais para os seus préstimos. Onde iria arranjar uma coroa igualzinha, mas mais leve?
Já faltava pouco para o dia da coroação. O rei queria dar a maior festa jamais vista naquele reino. As ruas estavam a ser decoradas com estandartes e bandeiras coloridas. Em breve chegariam alguns dos convidados de outros países. O seu pedido era mesmo urgente.
Estava quase a findar a primeira semana e o camareiro-mor não dava notícias. Até que pediu audiência ao rei. Trazia numa bandeja um volume coberto com um pano de veludo.
— Vossa Majestade, consegui que fizessem esta coroa em papel, melhor, papier-maché. Como vê, parece real — disse, mostrando-a ao rei. — As joias são verdadeiras, pois falei com o ourives e pedi-lhe rubis e safiras.
— De papel? Não pensaste que pode chover! Que patetice!
- .. Vossa Majestade irá no coche real!
- Não me contraries! Depois da coroação tenciono ir a pé pelas ruas, para
cumprimentar os meus súbditos. Leva esse objeto daqui para fora e que ninguém saiba disto! Rápido! Tens duas semanas para resolver o assunto!
O camareiro-mor estava a ficar desesperado. Pensou numa coroa de tecido — afinal as coroas estão forradas com tecidos. Mas também se podia molhar. Não era boa ideia. E de prata dourada? Também seria pesada.
Depois de muito pensar, no meio da segunda semana, pediu de novo audiência ao rei. Apresentou-lhe uma nova coroa.
- Vossa Majestade. Esta é feita de madeira. Ninguém diria. Encontrei um
marceneiro que faz milagres. Veja como parece de ouro!
— De madeira? E se estiver calor? A madeira pode expandir. E se rachar? Até pode pegar fogo! Que ridículo! Como foste pensar numa coisa dessas? Tens mais uma semana. Arranja solução, senão arranjo eu uma para ti!
O camareiro-mor sentiu as pernas como gelatina. Saiu a correr. Estava sem ideias.
Chegou a última semana e o rei estava cada vez mais impaciente. Falava alto, passava muito tempo a andar de um lado para o outro e até deixara de dar os seus habituais passeios a cavalo. Ouviam-se rumores de que deveria estar doente.
Até que… faltavam três dias para acabar a semana, o camareiro-mor voltou a pedir audiência ao rei.
— Vossa Majestade. Não posso dizer quem fez esta coroa, pois é segredo, mas veja lá se não é tal e qual a sua. E não é pesada! Experimente-a.
O dia marcado para a coroação estava mesmo a chegar. O rei não tinha grande escolha, mas deu razão ao camareiro-mor. Colocou a coroa e suspirou. O seu desejo fora satisfeito. Bom, pelo menos assim pensava.
Quando chegou o grande dia, foi coroado. Seguindo a tradição, passou pelas ruas no coche adornado com brasões da família, puxado por quatro cavalos, fortes e bem treinados. Encheu-se de alegria quando ouviu a multidão gritar ‘Viva o Rei! Porém, quando se lembrou da decisão de ir a pé saudar todos, sentiu um nó na garganta. Quis voltar ao palácio e mandou chamar o camareiro-mor.
— Traz-me a coroa usada por meu pai e por outros antes dele — pediu.
O camareiro-mor ajoelhou-se, juntou as mãos temendo o pior e disse:
— Vossa Majestade perdoe-me, essa coroa está na cabeça de Vossa Majestade!
O rei fitou-o com os seus profundos olhos verde-esmeralda, ao mesmo tempo zangado, envergonhado e agradecido. Colocou-lhe uma mão num ombro e disse:
— Não há nada a perdoar! Fizeste o teu melhor. Levanta-te! Vamos festejar!
Naquele momento, a coroa parecia brilhar como as estrelas. O rei voltou à rua, desta vez sorrindo, feliz por manter a tradição.
Conforme prometido, a festa da sua coroação foi a melhor jamais realizada. Assim ficou registado pelos cronistas reais.