Autor(a):

Teresa Dangerfield

A Coroa do Rei

O Conselheiro real, um homem idoso sempre sensato nos conselhos dados ao longo da sua vida, observava o monarca com uma mistura de preocupação e paciência. Achava natural ele estar nervoso, pois aproximava-se o dia da coroação. Viera lembrá-  -lo disso mesmo.

— Vossa Majestade parece-me não estar muito feliz com a ideia de usar a coroa que pertenceu ao seu falecido pai e a outros seus antepassados, mas… — disse, quase em segredo.

O rei interrompeu-o colocando-lhe a mão à frente, num gesto de desagrado.

            — Não é nada disso! Não venhas com a conversa de tradição, simbolismo e sei lá mais o quê. Essa coroa não é adequada para mim.

            — Mas, Vossa Majestade, esta cerimónia é muito importante para os seus súbditos. Que diria o rei seu pai?

            ­— Não quero ouvir mais!

            Dizendo isto, o rei apontou para a porta de saída dos seus aposentos e o Conselheiro saiu, cabisbaixo.

O monarca começou a andar de um lado para o outro, muito agitado. O manto de veludo adornado de bordados arrastava-lhe pelo chão. Quase tropeçava. O suor escorria–lhe pelas mangas largas e compridas da túnica de seda. Deitava as mãos à cabeça, despenteando os finos caracóis longos e alourados.

 

            — Não pode ser, NUNCA irei usá-la no dia da coroação. Afinal, sou o rei. Eu decido — vociferou, batendo com um punho na mesa mais próxima.

            Exausto, sentou-se na cadeira de espaldar alto. Limpou o suor da testa e mandou chamar o camareiro-mor. Este chegou daí a pouco, fazendo uma vénia. Acompanhava-o desde pequeno e estava habituado às suas teimosias.

— Vossa Alteza Real parece não estar bem. Não será melhor chamar o físico-    -mor?

  • Não preciso de físicos. Preciso de auxílio num assunto urgentíssimo.

 

­Esperam que, no dia da coroação, coloque na minha cabeça a coroa usada por meu pai, meu avô e outros antes dele. Mas eu NÃO QUERO, é muito ᑭᕮᔕᗩᗞᗩ

— Vossa Majestade tem a certeza?

— Que disseste? Como ousas contrariar-me?

— Perdoe-me, Vossa Majestade. Estava a pensar no dia da coroação de seu pai. Lembro-me da sua cara quando pegou na coroa. Ainda era criança.

— Era criança e agora sou adulto! E sei bem como é pesada. Há outras coroas. Por que razão não posso escolher outra?

— Eu…

— Chega! Não quero aquela ‘coisa’ na minha cabeça e não vale a pena tentares convencer-me. Tens três semanas para arranjar uma coroa igualzinha, mas mais leve. E penso não ser preciso lembrar-te: tem de ser tudo feito em segredo. Sabes bem quais os castigos por traição.

           

Agora era o camareiro-mor quem transpirava. Aquele pedido era demais para os seus préstimos. Onde iria arranjar uma coroa igualzinha, mas mais leve?

 

Já faltava pouco para o dia da coroação. O rei queria dar a maior festa jamais vista naquele reino. As ruas estavam a ser decoradas com estandartes e bandeiras coloridas. Em breve chegariam alguns dos convidados de outros países. O seu pedido era mesmo urgente.

 

            Estava quase a findar a primeira semana e o camareiro-mor não dava notícias. Até que pediu audiência ao rei. Trazia numa bandeja um volume coberto com um pano de veludo.

            — Vossa Majestade, consegui que fizessem esta coroa em papel, melhor, papier-maché. Como vê, parece real — disse, mostrando-a ao rei. ­— As joias são verdadeiras, pois falei com o ourives e pedi-lhe rubis e safiras.

            — De papel? Não pensaste que pode chover! Que patetice!

  • .. Vossa Majestade irá no coche real!

 

  • Não me contraries! Depois da coroação tenciono ir a pé pelas ruas, para

cumprimentar os meus súbditos. Leva esse objeto daqui para fora e que ninguém saiba disto! Rápido! Tens duas semanas para resolver o assunto!

 

            O camareiro-mor estava a ficar desesperado. Pensou numa coroa de tecido ­— afinal as coroas estão forradas com tecidos. Mas também se podia molhar. Não era boa ideia. E de prata dourada? Também seria pesada.

 

Depois de muito pensar, no meio da segunda semana, pediu de novo audiência ao rei.  Apresentou-lhe uma nova coroa.

  • Vossa Majestade. Esta é feita de madeira. Ninguém diria. Encontrei um

marceneiro que faz milagres. Veja como parece de ouro!

 

— De madeira? E se estiver calor? A madeira pode expandir.  E se rachar? Até pode pegar fogo! Que ridículo! Como foste pensar numa coisa dessas? Tens mais uma semana. Arranja solução, senão arranjo eu uma para ti!

           

O camareiro-mor sentiu as pernas como gelatina. Saiu a correr. Estava sem ideias.

Chegou a última semana e o rei estava cada vez mais impaciente. Falava alto, passava muito tempo a andar de um lado para o outro e até deixara de dar os seus habituais passeios a cavalo. Ouviam-se rumores de que deveria estar doente.

Até que… faltavam três dias para acabar a semana, o camareiro-mor voltou a pedir audiência ao rei.

            — Vossa Majestade. Não posso dizer quem fez esta coroa, pois é segredo, mas veja lá se não é tal e qual a sua. E não é pesada! Experimente-a.

            O dia marcado para a coroação estava mesmo a chegar. O rei não tinha grande escolha, mas deu razão ao camareiro-mor. Colocou a coroa e suspirou. O seu desejo fora satisfeito. Bom, pelo menos assim pensava.

           

 

 

Quando chegou o grande dia, foi coroado. Seguindo a tradição, passou pelas ruas no coche adornado com brasões da família, puxado por quatro cavalos, fortes e bem treinados. Encheu-se de alegria quando ouviu a multidão gritar ‘Viva o Rei! Porém, quando se lembrou da decisão de ir a pé saudar todos, sentiu um nó na garganta. Quis voltar ao palácio e mandou chamar o camareiro-mor.

            ­— Traz-me a coroa usada por meu pai e por outros antes dele — pediu.

            O camareiro-mor ajoelhou-se, juntou as mãos temendo o pior e disse:

— Vossa Majestade perdoe-me, essa coroa está na cabeça de Vossa Majestade!

 

O rei fitou-o com os seus profundos olhos verde-esmeralda, ao mesmo tempo zangado, envergonhado e agradecido. Colocou-lhe uma mão num ombro e disse:

            ­— Não há nada a perdoar! Fizeste o teu melhor. Levanta-te! Vamos festejar!

            Naquele momento, a coroa parecia brilhar como as estrelas. O rei voltou à rua, desta vez sorrindo, feliz por manter a tradição.

 Conforme prometido, a festa da sua coroação foi a melhor jamais realizada. Assim ficou registado pelos cronistas reais.

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AUTOR(A)
Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Foi docente do Ensino de Português no Reino Unido, onde reside há mais de 30 anos.  Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. É tradutora e dedica-se à escrita, uma paixão que a acompanha desde a infância. Para além das publicações na revista Palavrar, tem contos e alguns poemas integrados em coletâneas.

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