A Escrita substituiu a Voz - Maria Bruno Esteves

A escrita substituiu a voz

Despertou da cirurgia. A sua voz sumira: não se escutava qualquer som. Maria revive esse momento. Sentiu uma dor no coração. As lágrimas escorreram-lhe pela face. O medo de não voltar a falar instalou-se-lhe no íntimo. Seguiram-se anos angustiantes a procurar, a escrever, a ordenar tudo o que se passara. Entrava em pânico quando lhe faltava uma palavra, um nome, um acontecimento. Uma cortina de fumo ocultara-lhe as recordações. 

As memórias emergem em súbitos clarões. E a voz sempre presente.

Recorda a primeira vez que deixara a casa dos pais. Completara dezanove anos. Sentada junto à janela, observava as casas, as ruas, os campos. As gentes daquelas terras iam entrando e saindo, num rodopio de rostos e sons de vozes. Maria continuava sentada no seu lugar. A voz do pai, sempre presente, “o que os outros vão dizer!”. 

Parada, na beira da estrada, sentira medo do desconhecido. Era ainda uma menina, mas tinha de mostrar que era uma mulher. “Sou a professora!” afirmou para si própria. 

Foi um ano de descoberta. Os alunos eram pouco mais novos do que ela, uns quatro ou cinco anos. Estávamos em 1975. Vivíamos em pleno período revolucionário. A indisciplina reinava nas escolas. Os professores encontravam-se na linha da frente. Maria era uma jovem professora. A voz, a sua fraqueza. Crescera com o medo de não ser reconhecida. Mas nunca desistira de acreditar em si. 

Em criança, a timidez anulava-lhe a voz. Na escola permanecia em silêncio. Lembra-se de que durante a infância tivera dificuldade em soletrar determinadas palavras. Chamavam-lhe “sopinha de massa”. Nas aulas de educação musical escondia-se atrás das colegas. Sentia-se o patinho feio. Tinha de provar o seu valor todos os dias.  Aos outros e a si. A confiança surgiu quando largou os julgamentos, quando abandonou as máscaras que a protegiam. 

“A voz é o instrumento que nos permite comunicar. É através do seu som que os outros nos identificam”. A voz já não poderia ser o instrumento de trabalho. A escrita substituiu-a. E das palavras fez poesia.

 

Neguei-te

A verdade estava fechada

                       atemorizada

                      atormentada

no medo de ver a minh’alma nua

despida das sombras.

Nas minhas palavras o encontrei

e o reconheci.

Onde andaste?

Que lugares percorreste,

para que não encontrasse

o verdadeiro EU?

Aquele que pensava conhecer

e, afinal… desconhecia.

Dissimulado no mais profundo do meu SER,

apareceste

revelaste-te

reconheci-te no recôndito do meu coração

entre as dores do meu corpo

e tudo mudou:

─ era eu, o meu juiz!

Foi aparência ou engano

conveniência ou arte de sobrevivência

ou um EU encoberto

                         oculto

                     cobarde?

Suavemente… bateste à porta deste EU

perdido na procura

e que se procura

                                   … ainda.

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AUTOR(A)
Maria José Esteves
Maria Bruno Esteves

Maria José Bruno Esteves nasceu em 1956, no Cartaxo, mas foi em Santarém que cresceu. Fez a sua vida académica e profissional em Lisboa e, em 1981, foi viver para Almada. Licenciada e Mestre em Sociologia, pela Universidade Nova de Lisboa, desenvolveu a sua atividade profissional e de investigação nas áreas da educação, formação profissional e desenvolvimento social, no âmbito das quais foi autora de estudos, artigos e comunicações e coautora de referenciais de educação para a cidadania.

Aposentada, após um cancro lhe ter interrompido o percurso profissional, a escrita e a fotografia são a sua terapia. Começou a participar em cursos de escrita criativa e ganha coragem para publicar as suas reflexões e a sua poesia. A escrita de ficção surge como um desafio.

Publicou o seu primeiro conto «Caminho de Pedras», na coletânea «O Tempo das Palavras com Tempo» e participou na coletânea de poesia «Toca a Escrever 2021» e na coletânea de prosa e conto «Mulherio das Letras Portugal», editadas pela In-Finita.

É no seu blogue «Olhares e Memórias» e nas redes sociais que mostra as suas criações.

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