Deleito-me a estender o corpo na imensidão da praia. A areia envolve-me num turbilhão de grãos soltos e conchas abertas. Ouço o grasnar das gaivotas, que procuram alimento ao entardecer. Pintam o céu escarlate, com as suas tonalidades de branco e cinza. Não me incomodo com as pessoas que por ali deambulam. Caminham lado a lado, com as minhas gotas salgadas salpicando-lhes o rosto e os pés. Já se acostumaram à minha presença. Oiço-lhes as conversas e os gracejos indecorosos quando estão a sós, escondidos entre as rochas ou tapados pelas dunas. É curioso ver os filhos dos homens, que se tornam pais e mais tarde avós, num breve passar de anos que, para mim, é um pouco menos do que a eternidade.
Recordo os tempos já idos. Na Era dos Descobrimentos, as conquistas e viagens marítimas engrandeceram os homens, pela bravura e determinação, que mereceu o registo nos anais de Histórias de Além-Mar. Foram grandiosos os sonhos e a fé que depositaram em mim, assim como as fantasias e temores. Fizeram-se odes e pregões em meu nome.
Há anos que os ouço clamar por tudo o que sentem ser seu, por direito. Continuo a ser o espelho do céu que, acima de vós, reveste os dias. Nos momentos tranquilos, repouso o olhar bem alto, observo as nuvens e os traços suaves da minha luz. Arrasto comigo o desalento de nada compreender sobre a humanidade. Parecem viver sem amanhã. São a sombra dos antepassados, que se perpetua por gerações. No meu seio, desbravaram até aos confins da Terra. Quisera eu que me amassem, em vez de apenas tirarem o proveito.
Foi devido a mim que se gerou a vida. E sou eu que ao romper e inundar a terra, a torno fértil. Do solo árido, uma réstia de esperança faz com que as sementes brotem e despontem em direção ao sol.
Como me encanta ver a felicidade no rosto das crianças. O seu chapinhar quando me espalho em densos charcos que lhes inunda o calçado, não se importando com o que as suas mães dirão.
Então, porque me mancham a alma? Porque jazem os despojos de vidas mundanas e sem regra no meu leito?
Cansado, torturado, incompreendido, por vezes encolerizo-me e mostro-lhes a minha força. Na minha revolta, insurjo-me pelas cidades, rasgando o ventre daquela civilização. Aí, aterrorizados, choram e atormentam-se. Perguntam a um Deus que desconhecem, e que talvez somente naqueles momentos lhes sirva de consolo…- Porquê agora? O que fizemos para merecer esta desgraça?
Deixem-me rir… só um pouco. Até o posso fazer baixinho, embora, na realidade, quisesse gritar-vos aos ouvidos. Este planeta, onde me encontro e a vós me dirijo, só tem espaço para um número finito de pessoas. Quando alguém está a mais, a Natureza encarrega-se de levar o excedente. Nada disto tem a ver com a crença em alguma divindade. Mas preferem continuar a acreditar, por teimosia e obstinação. É o vosso desejo de que a vida tenha um propósito. Nem sempre tem um propósito ou faz sentido. Existe a continuidade e o equilíbrio, e estes fatores não dependem de vós. Àquilo a que vocês chamam sacrifício, eu chamo necessidade.
Não é tarde para reconhecerem que o passado já não é o presente e que, se nada for feito, não saberemos qual será o futuro. Entre o sonho e o pesadelo, abram os olhos e observem, a maneira como, a cada dia que passa, o filamento de prata que rasa as minhas águas se dissipa numa imensa escuridão. Aguarda-vos a clemência do Criador, a quem tanto oram, ou a ira implacável da Natureza.
É ou não verdade que lutam uma vida inteira contra o esquecimento?
Se pudessem, apurariam um decreto contra a perda. Não teriam mais de esgravatar a terra ou de correr contra a gravidade inexistente dos sonhos, agarrando-se a coisas já idas. Aquilo que veem partir ou que é arrancado às vossas mãos, por vossa inteira responsabilidade, denota um total alheamento. Na falta de perdão, submetem-se ao esquecimento. Talvez a perda e o esquecimento sirvam para vos preparar para uma outra realidade, a Grande Perda, chamada morte, à qual ninguém escapa