Autor(a):

Cristina Ferreira Grego
Cristina Ferreira Grego

A grande perda

Deleito-me a estender o corpo na imensidão da praia. A areia envolve-me num turbilhão de grãos soltos e conchas abertas. Ouço o grasnar das gaivotas, que procuram alimento ao entardecer. Pintam o céu escarlate, com as suas tonalidades de branco e cinza. Não me incomodo com as pessoas que por ali deambulam. Caminham lado a lado, com as minhas gotas salgadas salpicando-lhes o rosto e os pés. Já se acostumaram à minha presença. Oiço-lhes as conversas e os gracejos indecorosos quando estão a sós, escondidos entre as rochas ou tapados pelas dunas. É curioso ver os filhos dos homens, que se tornam pais e mais tarde avós, num breve passar de anos que, para mim, é um pouco menos do que a eternidade.

Recordo os tempos já idos. Na Era dos Descobrimentos, as conquistas e viagens marítimas engrandeceram os homens, pela bravura e determinação, que mereceu o registo nos anais de Histórias de Além-Mar. Foram grandiosos os sonhos e a fé que depositaram em mim, assim como as fantasias e temores. Fizeram-se odes e pregões em meu nome.

Há anos que os ouço clamar por tudo o que sentem ser seu, por direito. Continuo a ser o espelho do céu que, acima de vós, reveste os dias. Nos momentos tranquilos, repouso o olhar bem alto, observo as nuvens e os traços suaves da minha luz. Arrasto comigo o desalento de nada compreender sobre a humanidade. Parecem viver sem amanhã. São a sombra dos antepassados, que se perpetua por gerações. No meu seio, desbravaram até aos confins da Terra.  Quisera eu que me amassem, em vez de apenas tirarem o proveito.

Foi devido a mim que se gerou a vida. E sou eu que ao romper e inundar a terra, a torno fértil. Do solo árido, uma réstia de esperança faz com que as sementes brotem e despontem em direção ao sol.

Como me encanta ver a felicidade no rosto das crianças. O seu chapinhar quando me espalho em densos charcos que lhes inunda o calçado, não se importando com o que as suas mães dirão.

Então, porque me mancham a alma? Porque jazem os despojos de vidas mundanas e sem regra no meu leito?

Cansado, torturado, incompreendido, por vezes encolerizo-me e mostro-lhes a minha força. Na minha revolta, insurjo-me pelas cidades, rasgando o ventre daquela civilização. Aí, aterrorizados, choram e atormentam-se. Perguntam a um Deus que desconhecem, e que talvez somente naqueles momentos lhes sirva de consolo…- Porquê agora? O que fizemos para merecer esta desgraça?

Deixem-me rir… só um pouco. Até o posso fazer baixinho, embora, na realidade, quisesse gritar-vos aos ouvidos. Este planeta, onde me encontro e a vós me dirijo, só tem espaço para um número finito de pessoas. Quando alguém está a mais, a Natureza encarrega-se de levar o excedente. Nada disto tem a ver com a crença em alguma divindade. Mas preferem continuar a acreditar, por teimosia e obstinação. É o vosso desejo de que a vida tenha um propósito. Nem sempre tem um propósito ou faz sentido. Existe a continuidade e o equilíbrio, e estes fatores não dependem de vós. Àquilo a que vocês chamam sacrifício, eu chamo necessidade.

Não é tarde para reconhecerem que o passado já não é o presente e que, se nada for feito, não saberemos qual será o futuro. Entre o sonho e o pesadelo, abram os olhos e observem, a maneira como, a cada dia que passa, o filamento de prata que rasa as minhas águas se dissipa numa imensa escuridão. Aguarda-vos a clemência do Criador, a quem tanto oram, ou a ira implacável da Natureza.

É ou não verdade que lutam uma vida inteira contra o esquecimento?

Se pudessem, apurariam um decreto contra a perda. Não teriam mais de esgravatar a terra ou de correr contra a gravidade inexistente dos sonhos, agarrando-se a coisas já idas. Aquilo que veem partir ou que é arrancado às vossas mãos, por vossa inteira responsabilidade, denota um total alheamento. Na falta de perdão, submetem-se ao esquecimento. Talvez a perda e o esquecimento sirvam para vos preparar para uma outra realidade, a Grande Perda, chamada morte, à qual ninguém escapa

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Cristina Ferreira Grego
Cristina Ferreira Grego

Cristina Ferreira Grego nasceu em Lisboa, a 7 de dezembro de 1977. Licenciou-se em Medicina Dentária na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa em 2003. É Diretora Clínica nas Clínicas Médicas Amatus Lusitanus. Fez diversas pós graduações na sua área de especialidade, em Portugal e no estrangeiro.

 Em 2020, iniciou o primeiro curso de escrita criativa, embora tenha sido desde cedo uma área de grande interesse. Participou desde então em concursos literários, tendo ficado classificada no Top 10 do Campeonato de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Submeteu contos e textos para outros prémios literários a nível nacional. Faz parte do grupo de autores que participaram na coletânea «O Tempo das Palavras com Tempo» com o conto «Carpe Diem», lançado em janeiro de 2021.

Adora viajar, enquanto tempo de cultura e de reflexão. Gosta de viver o presente com uma perspetiva no futuro. Nos tempos livres dedica-se à leitura, à escrita, mas a sua grande paixão são as suas filhas Madalena e Carolina. Sente que o amor, os afetos e a união familiar são a sinergia perfeita que a move e a acalenta nos desafios existenciais.

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