Há personagens na história da literatura que nos marcam e acompanham para o resto da vida, apesar de nos suscitarem sentimentos contraditórios, por vezes mais negativos do que positivos, como a frívola Emma Bovary, de Flaubert, o pedófilo confesso Humbert Humbert, de Nabokov, ou o atormentado assassino Raskólnikov, de Dostoiévski. A este meu panteão de personagens indeléveis e amores conturbados, junta-se agora Olive Kitteridge, de Elizabeth Strout. A autora americana, galardoada com o prémio Pulitzer, criou uma Olive «tão Olive», que se destaca das páginas e se instala na cabeça dos leitores como uma mulher de carne e osso, uma velha ranzinza «que gosta de falar de si própria» e nos irrita, sim, mas nos comove sobejamente. Poucos de nós teríamos coragem de admitir, como Olive, «Não faço a mínima ideia de quem sou […], não compreendo nada».
Nos dois volumes de histórias que gravitam em torno de Kitteridge e se estendem ao longo de vários anos, Strout apresenta-nos vislumbres das vidas de antigos alunos, vizinhos ou familiares de Olive na (aparentemente) pacata vila costeira de Crosby, no Maine. A povoação é ficcional, mas, tal como os seus habitantes, entranha-se-nos na memória e deixa-nos saudosos das suas paisagens. Quando, neste segundo livro, Olive vende a sua casa à beira-mar e se muda para uma vivenda num terreno sem vista, sentimos uma intensa nostalgia daquela sua janela sobre a baía reluzente, à qual nos sentámos tantas vezes com ela, no primeiro volume. E a Olive que se nos revela agora é uma mulher em pleno balanço de vida, ciente da sua mortalidade: «a sua vida estava quase a acabar. Estendia-se atrás de si como uma rede de sardinhas, com todo o tipo de algas inúteis, pedacinhos de conchas e peixinhos diminutos e cintilantes…» Ciente, acima de tudo, dos seus erros: «De repente, foi assolada pela horrível vaga crescente da verdade: ela falhara e falhara de maneira colossal. Devia andar a falhar há anos, sem se aperceber.» O olhar de Olive, que antes se centrava implacavelmente nos outros, vira-se desta vez para dentro e a conclusão vai ao encontro dos sentimentos dos leitores: «Percebeu que era ela própria que não lhe agradava, a si, Olive.»
Elizabeth Strout tem uma invulgar capacidade de entrar na mente de cada uma das suas personagens e descrever, em pequenas cenas, concisas e incisivas, momentos que as definem em toda a sua complexidade humana. Nenhuma delas é de papel, nenhuma delas é plana, todas nos fazem reflectir, horas depois de fecharmos o livro, sobre as suas reacções e escolhas na vida, como, por exemplo, o casal que durante anos vive na mesma casa sem se falar e delimita o espaço de cada um com uma fita adesiva amarela no chão, e cuja filha lhes anuncia que é dominatrix; ou a advogada que descobre finalmente as origens da violência no âmago da sua família, o porquê de o seu irmão – que já conhecíamos de Olive Kitteridge – ter assassinado uma mulher com vinte e muitas facadas.
Os temas são pesados, poderiam ser deprimentes, mas a escrita de Strout é magistral e alterna parágrafos dolorosos, sobre o envelhecimento ou a solidão – «Há alturas em que tenho tantas saudades do Henry, que parece que nem consigo respirar», diz Olive, a dada altura –, com momentos hilariantes, em que damos por nós a rir de situações absurdas, como o despertar de Olive no hospital depois de sofrer um ataque cardíaco. Acima de tudo, Elizabeth Strout consegue apontar-nos, no meio da banalidade de vidas tristes e sensaboronas, os pormenores que as tornam únicas e faz-nos pensar que a felicidade está mesmo nas pequenas coisas que nos rodeiam: «da entrada de casa, [Olive] via a floresta e todas as manhãs, quando abria a porta, tinha noção da beleza do mundo. Era uma surpresa para ela. Quando o primeiro marido morrera, Olive não tivera noção de nada. […] Mas eis o mundo, agora, exibindo-lhe a sua beleza dia após dia, e ela sentia-se grata.»