Autor(a):

Tânia Ganho

A Luz em Fevereiro

Há personagens na história da literatura que nos marcam e acompanham para o resto da vida, apesar de nos suscitarem sentimentos contraditórios, por vezes mais negativos do que positivos, como a frívola Emma Bovary, de Flaubert, o pedófilo confesso Humbert Humbert, de Nabokov, ou o atormentado assassino Raskólnikov, de Dostoiévski. A este meu panteão de personagens indeléveis e amores conturbados, junta-se agora Olive Kitteridge, de Elizabeth Strout. A autora americana, galardoada com o prémio Pulitzer, criou uma Olive «tão Olive», que se destaca das páginas e se instala na cabeça dos leitores como uma mulher de carne e osso, uma velha ranzinza «que gosta de falar de si própria» e nos irrita, sim, mas nos comove sobejamente. Poucos de nós teríamos coragem de admitir, como Olive, «Não faço a mínima ideia de quem sou […], não compreendo nada».

Nos dois volumes de histórias que gravitam em torno de Kitteridge e se estendem ao longo de vários anos, Strout apresenta-nos vislumbres das vidas de antigos alunos, vizinhos ou familiares de Olive na (aparentemente) pacata vila costeira de Crosby, no Maine. A povoação é ficcional, mas, tal como os seus habitantes, entranha-se-nos na memória e deixa-nos saudosos das suas paisagens. Quando, neste segundo livro, Olive vende a sua casa à beira-mar e se muda para uma vivenda num terreno sem vista, sentimos uma intensa nostalgia daquela sua janela sobre a baía reluzente, à qual nos sentámos tantas vezes com ela, no primeiro volume. E a Olive que se nos revela agora é uma mulher em pleno balanço de vida, ciente da sua mortalidade: «a sua vida estava quase a acabar. Estendia-se atrás de si como uma rede de sardinhas, com todo o tipo de algas inúteis, pedacinhos de conchas e peixinhos diminutos e cintilantes…» Ciente, acima de tudo, dos seus erros: «De repente, foi assolada pela horrível vaga crescente da verdade: ela falhara e falhara de maneira colossal. Devia andar a falhar há anos, sem se aperceber.» O olhar de Olive, que antes se centrava implacavelmente nos outros, vira-se desta vez para dentro e a conclusão vai ao encontro dos sentimentos dos leitores: «Percebeu que era ela própria que não lhe agradava, a si, Olive.»

Elizabeth Strout tem uma invulgar capacidade de entrar na mente de cada uma das suas personagens e descrever, em pequenas cenas, concisas e incisivas, momentos que as definem em toda a sua complexidade humana. Nenhuma delas é de papel, nenhuma delas é plana, todas nos fazem reflectir, horas depois de fecharmos o livro, sobre as suas reacções e escolhas na vida, como, por exemplo, o casal que durante anos vive na mesma casa sem se falar e delimita o espaço de cada um com uma fita adesiva amarela no chão, e cuja filha lhes anuncia que é dominatrix; ou a advogada que descobre finalmente as origens da violência no âmago da sua família, o porquê de o seu irmão – que já conhecíamos de Olive Kitteridge – ter assassinado uma mulher com vinte e muitas facadas.

Os temas são pesados, poderiam ser deprimentes, mas a escrita de Strout é magistral e alterna parágrafos dolorosos, sobre o envelhecimento ou a solidão – «Há alturas em que tenho tantas saudades do Henry, que parece que nem consigo respirar», diz Olive, a dada altura –, com momentos hilariantes, em que damos por nós a rir de situações absurdas, como o despertar de Olive no hospital depois de sofrer um ataque cardíaco. Acima de tudo, Elizabeth Strout consegue apontar-nos, no meio da banalidade de vidas tristes e sensaboronas, os pormenores que as tornam únicas e faz-nos pensar que a felicidade está mesmo nas pequenas coisas que nos rodeiam: «da entrada de casa, [Olive] via a floresta e todas as manhãs, quando abria a porta, tinha noção da beleza do mundo. Era uma surpresa para ela. Quando o primeiro marido morrera, Olive não tivera noção de nada. […] Mas eis o mundo, agora, exibindo-lhe a sua beleza dia após dia, e ela sentia-se grata.»

Partilhe:
AUTOR(A)
Tânia Ganho

Tânia Ganho é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e foi assistente convidada na Universidade de Coimbra, onde leccionou tradução literária, área a que se dedica há mais de 20 anos. Traduziu Chimamanda Adichie, Alice Walker, Leïla Slimani, Angela Davis, Maya Angelou, Siri Hustvedt, Hervé Le Tellier, Alan Hollinghurst, John Banville, David Lodge, entre muitos outros grandes nomes da literatura mundial. Tem cinco romances publicados, sendo o mais recente Apneia (Casa das Letras, 2020). Em 2021, ganhou uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura, para escrever o seu novo romance.

MAIS ARTIGOS