A milésima primeira vez - Ana Costa

A milésima primeira vez

Quando o Rodrigo nasceu, uma fada vestida de motard entrou no quarto e olhando para o berço em que ele dormia, avisou a mãe:

— Este rapaz vai sempre acusar os outros injustamente. À milésima primeira acusação que fizer, uma maldição cairá sobre ele e só acabará com ela se…

Nisto, a mãe do Rodrigo acordou. Sobressaltada, sentou-se na cama, esfregou os olhos e olhou para o seu menino. “Que sonho tão estranho!”, pensou, mas acabou por não dar importância nenhuma àquilo. 

O Rodrigo cresceu e, com três anos, entrou no infantário. Não achou piada nenhuma a ter de ficar tanto tempo com outros meninos que só queriam os mesmos brinquedos que ele. Um dia, escondeu o carrinho preferido, seria só seu, mesmo que não pudesse brincar com ele. Quando as educadoras deram pela falta, procuraram-no por todo o lado, até o encontrarem por baixo do cesto dos jogos.

— Quem escondeu este carrinho? — perguntou a educadora Mena.

ele! — disse o Rodrigo, apontando para outro menino, que negou e começou a chorar.

— Rodrigo, não terás sido tu? — quis saber ela, franzindo a testa.

— Não fu eu! — insistiu o pequeno, começando também a chorar.

— Pronto, parem os dois com isso e que ninguém volte a esconder brinquedos. Eles são de todos e não gostam de ficar escondidos, porque querem entrar nas vossas brincadeiras — rematou a Mena.

Esta situação foi apenas a primeira de muitas que se seguiram. Parecia que o Rodrigo tinha uma mola no braço sempre pronta a disparar para acusar os outros. 

A educadora teve de falar com os pais. Eles ficaram muito envergonhados e não queriam acreditar que o filho fazia disparates e depois culpava os outros.

— Hoje não vês os bonecos, Rodrigo, ficas aqui sozinho até à hora do jantar! — anunciou o pai, sentando-o no sofá, para depois sair da sala a abanar a cabeça.

A mãe, com umas lágrimas tristes a pedirem para saltar dos olhos, preparava o jantar na cozinha.

— Não sei porque ele é assim — lamentou-se.

— Eu também não. Não é isto que lhe ensinamos — argumentou o pai.

— Mas a verdade é que já vimos situações destas a acontecerem… ele nunca faz nada, são sempre os outros…

— Se calhar, temos de o pôr de castigo mais vezes. Não chega conversar e tentar fazê-lo compreender…

— Pois, temos mesmo de mudar de estratégia — concordou a mãe.

E assim fizeram. Mas isso só veio agravar aquela tendência, pois as situações seguiam-se umas às outras. Os pais desesperavam. E ele ia crescendo. 

Certo dia, a mãe foi chamá-lo, como sempre, porque nunca acordava a horas.

— Rodrigo! Levanta-te que já estás atrasado! — gritou batendo à porta.  

De barriga para cima, abriu um olho e voltou a fechá-lo. Não lhe apetecia sair da cama. Espreguiçou-se e quis esfregar a cara, mas só conseguiu fazê-lo com a mão esquerda. Tinha uma sensação estranha no braço direito. Abriu os olhos e viu que estava todo esticado até ao indicador, como se estivesse a apontar para alguém. Quis recolhê-lo, mas ele não se movia. “Devo estar a sonhar!”, pensou.

Sentou-se na cama. O braço deixou de apontar para o teto e passou a apontar para a porta. Tentou em vão movê-lo. “Que se passa?! Não consigo mexer o braço!” Sentiu um calor percorrer-lhe o corpo e o coração a bater mais depressa.

— Rodrigo! — chamou a mãe mais uma vez.

“O que é que eu faço? Ninguém me pode ver assim!”

Pingas de suor corriam-lhe pela testa, enquanto se esforçava para mexer o braço. 

— Rodrigo! Não te levantas hoje? — insistiu a mãe, abrindo a porta. — Baixa lá esse braço! Começas o dia a apontar?!

— Não consigo… 

— Ora, lá estás tu! Não consegues porquê? — desconfiou ela, enquanto tentava mover o braço do filho. — É verdade? Não mexe mesmo? 

— Não, mãe! — confirmou o Rodrigo com os olhos cheios de lágrimas. 

— Não pode ser! Uma coisa dessas é impossível! — exclamou, levando as mãos à cara. E foi então que se lembrou do sonho e contou-o ao filho.

— Mãe, eu já tenho nove anos! Achas que acredito nessa história de fadas e maldições?! — reclamou o Rodrigo irritado. Agitou-se e bateu com o braço esticado na mãe, que estava sentada ao seu lado. — Desculpa! Não consigo mesmo controlar este maldito braço!

— Podes não acreditar, mas olha o que te aconteceu! Como explicas? Tens nove anos e já negaste mil e uma vezes teres feito algo, essa é que é a verdade, Rodrigo! Está mais do que na hora de ires para a escola! Despacha-te!

— Como queres que vá para a escola assim? 

— Tu é que sabes! — E saiu, deixando-o de olhos arregalados.

“Como é que eu vou assim? O que vão dizer de mim?” 

A caminho da casa de banho bateu numa jarra que se estatelou no chão. Mal conseguiu lavar a cara. Nem imaginam a ginástica que teve de fazer para se vestir e preparar!  

— Quem partiu a jarra? — perguntou a mãe.

— Fui eu…

— Finalmente admites o que fazes! — disse, sorrindo. — Vamos embora! 

— Mas eu nem tomei o pequeno-almoço! 

— Comes qualquer coisa pelo caminho, não há tempo. 

Desajeitado, o Rodrigo vestiu o casaco e deitou ao chão a gabardina que o pai deixara ficar. 

— Quem deitou isto ao chão? — perguntou a mãe.

— Fui eu…

Não conseguindo evitar um sorriso, ordenou-lhe:

— Agora, apanha-a e volta a pô-la no sítio.

Ele assim fez. Entrar no carro e sentar-se foi outra aventura. O braço obrigou-o a ir sentado de lado, desconfortável e ainda por cima a comer.

— Tanta migalha que para aqui vai! — reclamou a mãe quando ele saiu.

— Fui eu, depois limpo…

À porta da escola, sentiu as pernas tremerem e mordeu o lábio inferior. “Como vou fazer?”

Estava atrasado, por isso começou a correr para a sala, mas foi contra o Sr. Joaquim, ou melhor, o seu dedo direito espetou-se nas costas dele. 

— Olha por onde andas, rapaz!

— Desculpe, Sr. Joaquim! Foi sem querer!

O funcionário coçou a cabeça e comentou:

— Ouvi bem ou sonhei? 

Bateu à porta da sala e desculpou-se pelo atraso. Até chegar ao lugar, enfiou o dedo no nariz do Filipe, arrepelou a Daniela e ia deitando ao chão os óculos do Mateus. Foi pedindo desculpa, enquanto os colegas e até a professora o olhavam admirados. Quando finalmente se sentou no lugar, espetou o dedo no Márcio à sua frente. Teve de ficar de lado e pedir, mais uma vez, desculpa.

— O que se passa contigo? — perguntou a professora.

— Eu… Eu tenho um problema muscular no braço, não o consigo mexer… — confessou, quase a chorar.

— Vamos ver se esse problema não causa mais distúrbios. Parece que não vais poder escrever, por isso, fica bem atento! — recomendou a professora, dando início à aula logo de seguida.

Não imaginam o desconforto do Rodrigo. Os colegas olhavam-no e cochichavam trocistas. Nunca se tinha sentido assim. “Que raio de coisa me havia de acontecer!” Teve vontade de sumir, mas só se levantou do lugar no intervalo. Acabou por ser o último a sair, porque estava sempre a desculpar-se por espetar o dedo em alguém. A professora não conseguia evitar um sorriso. Apesar de a situação ser um tanto ou quanto estranha, era bom ver o Rodrigo a pedir desculpa! 

Aquele braço esticado não o deixava nem ir à casa de banho tranquilo e pregou um susto à dona Glória, quando lhe tocou nas costas!

Ainda tentou jogar futebol e até estava a dar jeito, pois um braço assim esticado afastava os adversários, mas o pior foi quando esbarrou com o João e o deixou com um olho negro! Cartão vermelho.

Sentou-se a um canto, desiludido. 

— Pareces um espantalho! — riu-se o Guilherme, fazendo-lhe uma careta.

— Espantalho és tu! 

De regresso à sala, o dedo indicador meteu-se mais umas vezes onde não devia e lá teve o Rodrigo de pedir outras tantas desculpas. 

A hora do almoço foi mais um tormento. Como só podia usar uma das mãos, precisou de fazer várias viagens até conseguir levar tudo para o lugar, ninguém se pôde sentar à sua frente na cantina e demorou imenso tempo a comer, mais uma vez sob os olhares de chacota dos colegas. “Eles divertem-se e eu sofro!” 

À tarde, a aula de Educação Física foi uma desgraça. A cambalhota ficou por dar e foi alvo de mais umas piadas. 

“Todos gozam comigo… não tenho amigos…”, lamentava-se em silêncio, sentado no chão. Cabisbaixo, nem se apercebeu de que a Joana se sentara ao seu lado. 

— Está a ser mesmo mau para ti… — comentou ela.

— Estás a falar comigo? — admirou-se o Rodrigo.

— Jurei que nunca mais ia falar contigo depois de me fazeres passar aquela vergonha à frente de todos… não foi nada simpático! E ainda por cima juraste a pés juntos que não tinhas sido tu…

— Desculpa! Sei que não o devia ter feito — admitiu, baixando a cabeça.

— Devias pedir desculpa a todos, por tudo aquilo que aprontaste ao longo de quase quatro anos, culpando sempre os outros. 

— Achas?! Já não chega o que estou a passar? 

— Queres continuar assim?

— Claro que não!

— O nariz do Pinóquio só crescia quando ele mentia… — disse ela, para depois se levantar com um sorriso e lhe piscar o olho. 

O Rodrigo ficou a pensar naquilo. Não tinha nada a perder, o dia já estava a ser um desastre e só queria mesmo voltar a mexer o braço. Foi ter com o professor de Educação Física e disse-lhe que queria falar à turma. 

— Quero pedir desculpa a todos por tudo aquilo que aprontei desde o primeiro dia nesta escola. Fui eu que rebentei a caneta vermelha na cadeira da Joana no dia em que ela trouxe calças brancas, fui eu que troquei os cadernos do Filipe e do João, fui eu que atei os atacadores do professor de Educação Física, fui eu que rasguei a página do livro de Português da Maria, fui eu que comi os chocolates todos que a professora trouxe no Natal, fui eu que meti a rã na pasta dela, fui eu que escondi o balde e a esfregona da dona Glória, fui eu que pendurei o papel a dizer “Estou perdido, levem-me a casa!” nas costas do Sr. Joaquim, fui eu que… E falou durante muito tempo, deixando todos de boca aberta. 

Quando se sentou no chão, de cabeça baixa, cansado da longa confissão, o professor pôs-lhe as mãos nos ombros e disse:

— Rodrigo, foi precisa muita coragem para admitires tudo isso diante de nós. Acho que o que viveste hoje te serviu de lição para tudo o que aprontaste durante estes anos todos! 

E todos começaram a bater palmas.

— Acho que agora já podemos ser teus amigos — disse o João.

Ele nem queria acreditar que fora capaz de confessar e, muito menos, que poderia ter amigos depois disso. Teve uma vontade enorme de abraçar os colegas, mas com o braço esticado não dava muito jeito.

Aquele final das aulas entre novas amizades quase que o fez esquecer-se do desconforto do braço, quase… 

— Estás muito bem-disposto. Nem pareces o Rodrigo que deixei aqui de manhã. — disse a mãe, quando o foi buscar à escola.

— Sabes, pedi desculpa a todos por tudo o que fiz desde que entrei para o primeiro ano e acreditas que ninguém ralhou comigo? Até me elogiaram! Acho que agora já posso dizer que tenho amigos! 

— Ótimo Rodrigo, afinal o braço esticado está a ser bom para ti!

— Sim, também tenho de te pedir muitas desculpas…

Em casa, depois do jantar, o Rodrigo pediu desculpa por tudo aquilo de que se lembrava de ter feito aos pais e eles até se riram ao recordarem certas situações, como aquele dia em que, à mesa, trocara um ovo cozido do pai por um cru. O coração deles pulava de satisfação.

Quando o Rodrigo se deitou, de barriga para cima e dedo a apontar para o teto, sentia-se muito bem e adormeceu a pensar na Joana. 

No dia seguinte, ao acordar parecia outra pessoa e só depois se apercebeu de que já podia esfregar os olhos com as duas mãos.

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AUTOR(A)
Ana Costa
Ana Costa

Ana Costa é natural de Viseu. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas Variante Estudos Portugueses e Franceses pela FLUC, conta com mais de vinte anos de experiência no ensino. Apaixonada pela vida, pela natureza e pelo bem-estar físico, mental e espiritual, dedica-se há cerca de dez anos ao desenvolvimento pessoal e às terapias naturais. É mestre de Reiki e terapeuta/ monitora nível 1 de Chi Kung. Sempre acalentou o gosto pela escrita, publicando textos num jornal académico — Letrear — criado quando era estudante e em jornais escolares de várias escolas por onde passou. Em 2004, publicou em coautoria o livro As Faces Secretas das Palavras com a editora ASA. Em 2020, participou com um poema na Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea Vol. XII – Entre o Sono e o Sonho da ChiadoBooks. Em 2021 participou com outro poema na coletânea Alma de Mar também da ChiadoBooks. Ainda neste ano, publicou o conto “Uma ponte para o passado” na coletânea Não vão os lobos voltar e o seu primeiro livro juvenil Mergulhos na maré vazia, ambos edição de autor. Está envolvida em vários projetos literários e dinamiza Oficinas de Escrita Criativa. Acredita na força da palavra escrita e no seu poder transformador.

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