Autor(a):

Ana Paula Campos

A minha pátria é a liberdade

— Anda comigo ver os aviões.

A Sofia revira os olhos e ri-se. Apesar de achar que este ritual é uma patetice, acede ao meu pedido. Sabe que vai ouvir novamente a história, mas é outra oportunidade de estarmos juntos, agora que o curso de Medicina a trouxe para a capital, afastando-a, novamente, de mim. Além disso, também ela gosta de falar do nosso país.

Sempre que venho a Lisboa, em trabalho, faço isto. Nos últimos dois anos, a minha filha mais nova acompanha-me. Sentamo-nos num muro do Vale do Silêncio, de onde avistamos os pássaros metálicos, e regresso ao fim da minha primeira vida.

 

Era uma tarde de janeiro, como hoje. Aquele momento inexato em que já não é dia, mas também ainda não é noite. Um intervalo entre tudo.

Quando o avião começou a sobrevoar a cidade, desabou a tormenta. Lá fora e em mim. Os minúsculos pirilampos que desenhavam Lisboa piscavam, na tentativa de iluminarem os caminhos. Adivinhei o frio, o desconforto, a falta de lar. No meu Caribe, a chuva é abençoada. Cai inesperada e torrencial. No entanto, furtiva, afasta-se rapidamente para abrir rumo à luz. Abracei a solidão, protegendo-me da saudade que não mais me largaria. Companheira de aliança no dedo e cerimónia religiosa.

A cauda de riscas azuis e vermelhas do meu país aterrou numa dança de pares errados como a turbulência no meu coração. A enormidade do aeroporto desorientou-me e andei algum tempo perdido. Engoli uma sandes mista no bar e dirigi-me à saída.

Sem que contasse, esperava-me o sorriso franco do meu primo. No abraço apertado dissemos o que não precisava de voz.

— Pensaste que te dejaría solo?

Um pedacinho de casa. A minha língua que ficara para trás há algumas horas, mas me parecia já tão distante.

O caminho fez-se na algazarra do reencontro dos que se querem bem. Ele insistia em saber tudo sobre a família, os amigos, os lugares. Só não sobre o país. A mim encantava-me o carro. O meu primo tinha um carro! Quando fugira, com dezoito anos, na casquita de noz que o levara para Miami, ficámos apavorados. Um bilhete num pedaço de papel, que era o rosto da boa disposição do rapaz: “Si los tiburones me comen, le dejaré mi fortuna a Orlando.” Não o comeram os tubarões, não o matou a fome nem a sede. Não herdei a fortuna. Um mês depois, soubemos que a travessia se fizera com sucesso e Ramón estava em casa de uns amigos. No meu país, aprendemos, há muito tempo, a sermos família.

Por insistência minha, deixou-me na modesta pensão. O primo trabalhava à noite num restaurante e não me apeteceu jantar sozinho com a mulher que o trouxera para Portugal e eu não conhecia. Precisava de rememorar os passos que daria e aquietar-me. Teria de comparecer no Congresso de Anestesiologia, às oito da manhã. Seria o terceiro palestrante. Por mais que adorasse a minha profissão, os meus olhos precisavam de perceber de onde poderia vir o perigo e de onde poderia vir a ajuda. Reconheci, facilmente, três ou quatro típicos compatriotas, vendidos ao regime, talvez por mais um terço do pão do racionamento. Não por ideologia. Com toda a certeza, tinham falhado a minha chegada, na véspera. Não sabiam do meu encontro com Ramón ou já me teriam “chamado à parte”.

Nada no meu comportamento, nesse dia ou nos três que se seguiram, denunciou os meus intentos. O espaventoso primo manteve a distância, sem qualquer explicação. O congresso decorria com tranquilidade e eu desesperava. Ao quarto dia, sem o contacto combinado, a incerteza transformou-se em deceção. Sem a prometida ajuda, o dinheiro que tinha trazido esvaíra-se na estadia. Apesar de representar o meu país, as despesas pesavam nos ombros.

 

A mala pronta. O meu espírito já se despedia da ilusão de liberdade, quando um envelope resvalou por baixo da porta. Abri-o imediatamente, mas já não vi ninguém no corredor. Li o número de telemóvel, no bilhete do interior, enquanto corria para a janela. A dobrar a esquina, uma manga preta deixou entrever a ponta de um martelo, numa tatuagem. Um dos esbirros do regime. Seria uma armadilha? O que poderia eu fazer? O coração ressoava as bombas e rajadas das metralhadoras daquela noite de que sempre ouvi falar, na malfadada Baía. Liguei. A voz que ouvi do outro lado imobilizou-me. “Caro colega, eu e a minha mulher teríamos muito gosto em que jantasse, hoje, em nossa casa. Traga a mala. Precisará dela.”

O Dr. Andrade Menezes albergou-me durante o período do meu pedido de equivalência ao curso de Medicina, em Portugal. Um amigo que foi trazendo outros à minha nova vida.

 

Acabei por me instalar no centro do país e, durante quatro anos, matei o corpo a trabalhar onde e quando não podia. A alma manteve-se viva nas saudades de Maribel e das meninas. A minha mulher recebeu as represálias pela minha fuga com a dignidade e candura de sempre. Éramos uma verdadeira família, pelo que tudo fora planeado por ambos. Conhecíamos os riscos. Desconhecíamos era o verdadeiro sabor de uma liberdade só adivinhada nas fugazes notícias que iam chegando dos exilados. Durante esse tempo, poucas vezes falei com a minha família. As chamadas eram caríssimas e os telefones raros. Nem todos tinham um conhecido estrangeiro, que aceitasse ter o número de telefone no seu nome. Comi o pão que o Diabo amassou, como se diz por cá. Elas pouco pão tinham. Como Penélope, a minha mulher foi tecendo a rede de contactos e documentos. Não para me esperar, mas para vir até mim. 

 

Naquela noite, Ramón ligou-me ainda mais eufórico do que de costume. As palavras atrapalhavam-se-lhe na boca e, no início, pouco consegui perceber. Fui ouvindo entrecortadamente: “Maribel…hijas…aeropuerto…mañana…” Desesperava no grito que lhe lancei. Abrandou o ritmo. A minha vida recomeçava ali.

 

— Conta-me, outra vez, como foi o nosso reencontro — pediu a minha menina, apesar de se lembrar muito bem.

Continuamos deslumbrados com a dádiva que a vida nos proporcionou. Em casa, mantemos a memória. A nossa terra será sempre aquela em que nascemos e onde ficam os nossos mortos.

Às vezes, penso que deveria ter ficado e lutado pela liberdade. Mas é difícil lutar sem pão na mesa. É difícil erguer a voz contra a repressão, a prisão, a tortura, se as nossas armas não passam de um punhado de mãos cheias de gritos.

Daqui posso pôr mais pão na mesa dos que ficaram. A opressão não conhece a dignidade. Recebe bem o dinheiro dos que partem.

Afinal, nunca deixei o meu país. Foram os senhores da ditadura que o fecharam para mim.

Não me arrependo. Escolhi o lado certo. A minha pátria é a liberdade.

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AUTOR(A)
Ana Paula Campos

Paula Campos nasceu do Mondego, com os pés em Coimbra e os sonhos pelo mundo.

A escolha da área de formação e da profissão (professora de Português) foi consequência previsível de alguém apaixonado pelas palavras desde que teve consciência de si.

Os livros fizeram parte da sua vida, mesmo antes de saber ler. Estavam por todo o lado e eram folheados com respeito e admiração. Depois do espanto de aprender a juntar palavras, passaram a ser, literalmente, companheiros de todas as horas. Quando já não lhe chegavam os que habitavam a casa, tornou-se visita habitual da maravilhosa Biblioteca Municipal de Coimbra, à data a funcionar no antigo Convento de Santa Cruz.

A escrita seguiu o caminho da leitura, desde cedo, embora só há poucos anos tenha ganhado coragem para a divulgar.

Participou, ativamente, em tertúlias de poesia, em Penacova.

Publicou, regularmente, no jornal “O Ponney”, durante cinco anos.

Organizou atividades literárias na Biblioteca Municipal de Coimbra e na Feira do Livro de Coimbra.

Tem contos e textos em prosa poética publicados em três coletâneas e numa revista brasileira.

Desde 2020 que dinamiza um clube de leitura e um grupo de escrita criativa.

E os sonhos sempre na leitura e na escrita.

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