Sempre quis ser escritor. É fácil decorarmos os quilos de farinha, os decilitros de leite ou os gramas de açúcar para os doces que queremos confecionar, mas, anotar essas quantidades, assalta qualquer pessoa. Não tinha doutoramento em literatura portuguesa ou daqueles em línguas germânicas e afins. A possibilidade em aberto era «pastelar». Neste ato, não reina a capacidade de cuspir palavras, também não reina o julgamento e a luta aguerrida entre letrados. Ser pasteleiro tinha vantagens. Aliás, foi no tempo livre, enquanto procurava viver sem escrever, que criei o famoso Pastel de Nata.
Descobri que, o novo pastel, tinha todas as hipóteses de me aliviar a ansiedade quando ainda estava no forno. Em formas metálicas, estrategicamente falantes pelo cheiro, eram um conjunto que me adivinhava os pensamentos.
Criei o nome, Pastel de Nata, na privacidade. Se falasse antes do tempo poderia começar uma guerra e, impaciente, vivi as variadas tentativas, até aperfeiçoar a fórmula. Sentava-me no mocho do meu avô e acompanhava o tempo de cozedura. De olhos cravados na porta do forno, desculpava a minha falta de jeito na escrita, com os livros que não li ou os pais analfabetos que tive. Evitava a todo o custo encarar o único livro que tinha na estante: Cartas a um jovem escritor de Colum McCann. Mas, o azul da capa, quase encostado ao rabo do elefante de loiça, puxava-me sempre para as profundezas do desejo. Depois, focava-me nos ossos dos joelhos dobrados, que imbicavam para fora como se indicassem o caminho de um ponto invisível e catastrófico. A minha condição era analisar ao milímetro a cozedura, garantindo o borbulhar e a combinação entre o creme de nata e a massa folhada, uma fragrância amanteigada e delicada, adocicada e hipnotizante.
Assim começou. Levou um semestre para um erro de principiante se instalar no mundo. A receção da minha nova sobremesa foi estrondosa.
Logo no primeiro dia, em que levei as amostras para a pastelaria, enterrei o defunto; o livro que nunca comecei. O meu Pastel de Nata, tornou-se no culpado. De cada vez que alguém lhe dava uma trinca e eu ouvia o estalar do folhado, era impossível não pensar nas letras e em como me faziam feliz. Porém, eu era pasteleiro, o meu comportamento tornava esta debanda única e, o meu doce, passou a ser uma espécie de porta fechada. Mesmo que me quisesse levantar e sair da sala, eu não sabia da chave para a abrir. O descalabro começou quando a palavra se expandiu. Na boca do mundo estava o paladar e a palavra pastel.
Dias depois, irrompeu pela cozinha da pastelaria um estranho. De fato, elegante e composto. Tenho consciência de que fiquei semicerrado − a cotovelada do Armando serviu o seu propósito. Desmontei o rosto. Limpei as mãos enfarinhadas ao avental e criei o mais falso-e-confiante aperto de mão. Senti medo. O homem foi direto ao assunto, «chamo-me Vladimir e peço-lhe que me entregue a sua receita. Pode ficar rico com tanta doçura». Pareceu-me passar demasiado tempo até ouvir a minha voz, «está tudo na minha cabeça. Nunca a escrevi», salientei. «Mas escreva-a, homem», pediu-me. «Sabe, eu tenho uma relação estranha com as palavras. Sempre quis ser escritor, contudo quando escrevo sofro de palpitações». Não insistiu. Expeliu umas gotas de muco pelas narinas e saiu batendo com a porta, não sem antes deitar-me um olhar, o que me fez ficar a latejar ouvindo o sangue a escorregar-me pelas veias. A receita da minha iguaria tinha-se metamorfoseado e senti que acabara de pôr a minha alma em risco.
Durante vários meses chegavam-me ao correio bilhetes ameaçadores. Letras recortadas e coladas manchavam o branco. Uns diziam que tinha poucos dias de vida, outros, que a morte seria uma bênção, depois de tudo o que queriam fazer com o meu corpo. Registavam procedimentos, amputações, privações de sono. As letras ondulavam, enquanto a minha visão humedecia de terror.
Ponderei muito e acabei por contar ao chefe as ameaças de que sofria. Pediu-me detalhes e, talvez para me aliviar da tensão, aconselhou-me a superar o medo da escrita, «Escreve o raio da receita. Ou então vai à polícia. Já te vejo raptado a esvaíres em sangue numa cave mofada». O fantasma do desconhecido era mais perturbador do que o provável morto que poderia tornar-me. Aceitei o conselho. A minha criatividade em sobremesas nunca iria acabar. Sobremesas há muitas, destino só tinha um. Com dor, registei o modo de preparação. Escrever é uma tortura mesmo que venha em centilitros e com gramas à mistura.
Combinámos a entrega à porta da Faculdade de Letras de Lisboa. Eu, mumificado, limitei-me a ficar encostado a um dos pilares, na dúvida se as minhas pernas aguentariam o iminente ataque de nervosismo. Vi-o chegar. Abraçou-me com força e murmurou algo que não compreendi. Por vergonha ou temor, não expressei uma única palavra. Nem sabia por onde começar, qualquer palavra com aquele homem seria desperdiçada. Entreguei-a e viu-o partir satisfeito com a conquista. Dentro do carro, com o motorista a avançar cautelosamente o veículo para a saída, puxou de uma arma e deu-me um tiro. Fiz o que fiz para não morrer. Sem ser suficiente. Aguentei minutos. Pensei em todos os livros que nunca li, nas histórias que nunca narrei, nas cartas que nunca enviei. Em seguida, fui colhido por imagens alegres da infância que passei com os meus pais, os animais da quinta, a Julieta, a minha égua de eleição. Concluí que existia do lado errado da narrativa. Ainda senti o contraste do mármore frio e do sangue morno. As letras gravadas no chão desapareceram no meio de tanto vermelho.
Por milagre, renasci.
Emergi nas águas do Tejo, todo nu. Inspirei uma nova oportunidade de vida. De início, senti dor; o diafragma expandido como um balão insuflado. O nascimento é misterioso, mas o renascimento ainda é mais. Num momento estamos vivos e insatisfeitos e, depois de um choque, vivos e satisfeitos. Morrer, dá-nos outra perspetiva.
Desta vez, não iria fazer pastéis de nata. Sempre quis ser escritor. Estava agora a viver no lado certo.