Autor(a):

Robson Siebel

A névoa que nos rodeia

Todos os domingos, as pessoas de Nova Baviera reuniam-se para a celebração do culto matinal. A igrejinha amarela, no alto de um morro bastante íngreme, era cercada por grama selvagem muito verde e, mais além, por uma mata densa e escura, que circundava toda a vila. O caminho que levava até à igreja era uma trilha sinuosa de terra batida que, nos dias de chuva, se transformava num barro lôbrego e pegajoso, forçando os fiéis a subirem numa marcha lenta e exaustiva.

Foi na igreja, ainda antes de o culto começar, que ouvi pela primeira vez sobre o desaparecimento do filho do criador de ovelhas. Estávamos sentados num dos bancos da frente: meus pais, Lukas, eu e Gisela. Tínhamos de nos sentar sempre em ordem, do filho mais velho para o mais novo. Eu balançava os pés, que ainda não alcançavam no chão. O meu pai notou a camada de barro seco por baixo do meu sapato, e mandou que fosse lá fora limpá-los.

Com a cabeça enterrada entre os ombros, fui até a frente da igreja, onde havia uma raspadeira. Enquanto limpava o meu sapato, ouvi um pouco da conversa da Norma, nossa vizinha, que falava com uma viúva, de cujo nome já não me lembro, uma mulher de cabelos brancos e muito ralos, magérrima, que andava sempre vestida de preto.

— Parece que fugiu o Norberto, dos Schäffer.

— Mas não! O mais novo? — indagou a viúva.

Ja — Norma respondeu em alemão.

— Que coisa, um menino tão trabalhador.

Norma baixou o tom de voz.

— Aquilo não se dava bem com o pai, dizem.

Ach, esse Schäffer fede a schnapps. Não, não.

As duas entraram sem notar a minha presença. Quando voltei ao meu lugar, o pastor já estava no púlpito, vestindo a sua batina preta habitual. Chamava-se Tomas Neumann e era um homem jovem, devia ter menos de quarenta anos. Tinha os cabelos muito lisos e claros, e sorria sempre, apesar de ter os dentes bastante separados e amarelados. Gostava muito de crianças e fazia questão de cumprimentar todas, falando com elas como se fossem adultos: “Bom dia, frau Hilda, como está? Frau Gisela, que bom vê-la, elegante como sempre, como vai a família?”

Foi só alguns dias depois que ouvi novamente sobre o menino que fugira. Tinha-me levantado no meio da noite com sede, mas, ao sair do quarto, ouvi conversar na cozinha. Fiquei parada, atrás da porta entreaberta, à espreita. Falavam do filho dos Schäffer. O meu pai contava à minha mãe que Herbert Schäffer, o pai do menino, estava desolado. Não acreditava que o filho tivesse fugido. Desaparecera apenas com a roupa do corpo, não havia levado nada.

No dia seguinte, os meus pais perguntaram a mim e Lukas se sabíamos algo sobre o sumiço do menino. Norberto tinha a minha idade, mas era muito calado e solitário. Fisicamente, parecia-se muito com Lukas, tinham o mesmo cabelo dividido ao meio e a mesma altura, apesar do meu irmão ser mais velho. Era uma criança bastante magricela e pequeno para a sua idade. Dissemos que não sabíamos de nada e o meu pai disse, muito sério, que devíamos ter cuidado com estranhos que passassem na estrada. A qualquer sinal, deveríamos chamar algum adulto da aldeia.

No domingo, o pai amanheceu com febre muito forte, e a mãe ficou a cuidar dele enquanto eu, Lukas e Gisela fomos à igreja. Era uma manhã fria e uma névoa espessa tinha assentado no vale. A igreja, lá no alto, ficara completamente escondida. A humidade do ar era tanta que sentíamos o rosto e as roupas molhados. Subimos o morro lentamente, tentando não nos atolarmos no barro. Em certo ponto, Lukas incomodou-se com a nossa lentidão (eu ia especialmente devagar, porque tinha de ajudar Gisela) e decidiu ir à frente, a fim de garantir um bom lugar.

Lembro-me de chegar lá em cima exausta, porque acabei tendo que levar Gisela ao colo, na parte mais íngreme do caminho. Limpámos a lama no raspador e na grama molhada, e entrámos, recebidas com um calor acolhedor. Não vi onde Lukas estava sentado.

No final do culto, ficámos do lado de fora à espera do Lukas. O pastor Tomas cumprimentava todas as pessoas à saída, compartilhando palavras de apoio e agradecendo a presença de cada um. Quando todos haviam saído, perguntei ao pastor Tomas se vira o nosso irmão e ele disse que sim, que o vira sair logo que o culto acabara, e que provavelmente já estaria em casa.

Descemos com cuidado para não ficar com as roupas sujas de barro. Quando chegámos a casa, a mãe já preparava o almoço.

— Onde está o teu irmão?

Quando respondi que já tinha vindo antes de nós, ficou furiosa, disse que era suposto andarmos juntos e, agora com o pai doente, quem é que ia sair para procurar por ele?

Tive que insistir com Gisela para que ficasse em casa, porque não a podia ter a atrasar-me. Chorou e ficou emburrada. Peguei um pedaço de kuchen em cima da mesa e saí para procurar o meu irmão. O sol nunca apareceu naquele dia e a névoa, que antes parecia iniciar uma retirada tímida, começava a ganhar nova força. Fui primeiro à casa dos vizinhos com quem o meu irmão brincava e depois aos lugares onde ele costumava ir: a cachoeira, a velha árvore tombada e o campo de futebol. Nada. Fui de casa em casa, perguntando se alguém sabia dele. Várias pessoas o haviam visto na igreja, mas ninguém o vira depois disso.

Já era fim de tarde quando bati à única porta que faltava, a da família Schäffer. Quem atendeu foi um dos irmãos de Norberto, não me recordo como se chamava. Perguntei se havia visto Lukas, mas ele balançou negativamente a cabeça.

— Quem é? — veio a voz rouca do pai dele lá de dentro.

— A Hilda! — O rapaz gritou para dentro. — Filha do Aldo Opfer.

Ouvi o assoalho de madeira estalar com passos pesados e arrastados. O rapaz saiu e deu lugar ao pai. Herbert era um homem alto e magro, tinha a barba por fazer, cheia de fios brancos e os cabelos oleosos desarrumados.

— O que foi? —perguntou, e senti imediatamente o bafo de bagaço.

— Queria saber se viram o Lukas.

Olhou ao redor, para além de mim, para o campo tomado de névoa, como se procurasse alguma coisa.

— Sumiu?

— Não o vejo desde o culto. Já procurei em todo o lado. Ninguém o viu.

Herbert balançou a cabeça num movimento que me pareceu mais uma manifestação de indignação do que uma resposta à minha pergunta, porque nem sequer me olhava diretamente, parecia encarar o vazio. Em seguida, fez o sinal da cruz e pousou a mão no meu ombro.

— Sinto muito — disse, e depois entrou em casa, fechando a porta atrás de si.

Fiquei parada ali por alguns segundos, encarando a porta e tentando perceber por que as palavras dele me tinham dado vontade de chorar. Enxuguei os olhos e atravessei a longa varanda, abri o portãozinho de madeira e, quando pisei o degrau que dava para o relvado na frente da casa, apanhei um susto.

A pouco metros, parada no meio do caminho, estava uma ovelha, fundindo-se com a névoa. Tinha a cabeça muito preta e o pelo branco espesso, pronto para a tosquia. Os olhos, grandes e esbugalhados, miravam-me com ar inquisidor. Dei um passo hesitante à frente, intimidada pelo animal. A ovelha soltou um balido longo e estridente que ecoou pelo vale, um som triste que me encheu de pena.

Aproximei-me lentamente e, num movimento impulsivo, estendi a mão para tocar a cabeça da ovelha. Ela recuou e começou a andar na direção da saída da propriedade. Até hoje não sei o que me compeliu a fazer o que fiz em seguida, ou que tipo de ligação tive com aquele animal, naquele momento. Quando dei por mim, estava a segui-la pela estrada de terra, cercada por um mar de neblina e pela escuridão da noite, que havia chegado. A ovelha não olhava para trás, andava sem pressa. Passou o riacho com muita segurança e começou a seguir o caminho tortuoso que levava até à igreja.

Quase a meio da subida, tropecei no que julguei ser uma pedra. Ao olhar mais de perto, vi que era um calçado preso na lama, o sapato de Lukas. Estava voltado para o lado oposto, como se o tivesse perdido ou abandonado enquanto descia. Aflita, continuei a seguir a ovelha até que ela parou à frente da porta da igreja. Fitou-me com aqueles olhos esbugalhados, por um momento, e então começou a pastar.

Essa imagem ficou gravada na minha memória para sempre: a pequena igreja amarela de madeira, com uma torre estreita logo acima da porta de entrada; na sua frente, uma ovelha parada ao lado de uma cruz com a tinta descascada; tudo isso envolto por uma névoa espessa. E a porta da igreja entreaberta, com um feixe de luz a escapulir.

O momento que entrei não está claro na minha memória, mas tenho ainda muito nítida a visão do alçapão aberto no púlpito, bem em baixo de onde costumava ficar o altar. Lembro-me de descer silenciosamente os degraus de madeira que levavam ao porão e de ouvir uma voz familiar repetindo uma frase  em alemão. Lembro-me de ver, à luz de um lampião, um homem com as costas nuas arqueadas sobre a mesa. E ainda o cheiro, um cheiro forte como jamais tinha sentido, algo que lembrava álcool misturado com um cheiro metálico enjoativo.

Percebi, pelo cabelo, que o homem de costas era o padre Tomas e entendi a frase que repetia: “Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe.” Andei um pouco para o lado, enquanto me aproximava para conseguir ver o que estava sobre a mesa. Vi o meu irmão, nu e estirado sobre uma poça de sangue. Uma linha de suturas começava na sua virilha e seguia pela barriga e por todo o tronco, até à cabeça, onde passava perfeitamente no meio dos lábios, do nariz e entre os olhos. A seguir, entrava no couro cabeludo, onde o pastor mexia atentamente, segurando uma agulha curva.

— … já não são dois, mas sim uma só carne.

Nesse momento percebi que não olhava para Lukas, apenas para parte dele. A outra parte era o menino Norberto. Vi, no chão, aos pés do pastor Tomas, um serrote ensanguentado.

— … o que Deus uniu, ninguém separe.

Mas o pior, absolutamente o pior de tudo, foi quando vi que se mexeu. O braço de Lukas moveu-se como com um espasmo, e, então, notei o seu olho aberto e soube que me via. Vi no seu olho solitário a súplica pelo fim do sofrimento e uma tristeza imensurável, um pedido mudo de desculpas, uma ânsia pela libertação.

Senti um líquido ácido subir-me à garganta e fiquei tonta. Até hoje não sei como não desmaiei ali. O pastor Tomas estava tão concentrado, tão absorto no seu trabalho, que não se deu conta da minha presença. Saí tão silenciosamente quanto entrei, e quando abri a porta da igreja, encontrei Herbert parado ao lado da ovelha, segurando uma espingarda.

— Vai para casa — ele disse, se aproximando — e diz para o teu pai mandar chamar a polícia.

Depois disso, entrou na igreja. Desci aquele morro a toda a velocidade, deslizando pelo barro e pela grama molhada. Quando cheguei lá em baixo, ouvi um disparo ecoar pelo vale, e parei. Outro disparo, continuei a correr para casa.

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AUTOR(A)
Robson Siebel

Robson Siebel é natural de Capinzal, uma cidade pequena no sul do Brasil. Conseguiu encontrar uma interseção na carreira de programador e na paixão pela escrita criando jogos narrativos como Blackout: The Darkest Night, também publicado como livro-jogo. Em 2022, teve o seu conto, «O Ovo de Jhan-dih-ra», publicado na antologia Espadas e Feitiçarias. Atualmente, reside em Lisboa, onde trabalha com jogos digitais e escreve contos que vagueiam pela ficção especulativa e pelo realismo mágico.

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