a oliveira e a espada

A oliveira e a Espada

Esperais que as chamas me ocultem o olhar?

Pois se todos vós me conhecíeis desde que nasci. Todos me vistes ainda menina, rompendo as plantas dos pés nos caminhos criados pelos vossos pais, roubando fruta das árvores plantadas pelos vossos avós.

Todos me conhecíeis o olhar curioso, inquieto, apesar de incapaz de penetrar na pele dos animais. E assim me vistes levar para casa rãs, cobras e salamandras que eu cortava com minúcia à janela para perceber que segredos os faziam mexer, saltar, viver.

Alguns de vós até me abristes as portas para me mostrardes os órgãos do porco acabado de matar. E apontáveis-me a faca ao ventre, gracejando, “se te abrisse a barriga, ninguém saberia a diferença da do porco”. Esperáveis choque ou medo e não o fascínio que eu derramava. A troça parava quando eu me ajoelhava no chão ensanguentado e separava fígado, pulmões, coração.

 

Esperais que o fumo vos disfarce o remorso?

Pois se fostes vós mesmos que me levastes à casa de quem me poderia ensinar. E a Velha, enrugada, artrítica e cega, carregava mais saber do que vós todos juntos alguma vez conhecereis. Mostrou-me as ervas que a Natureza espalha por aqui e por ali, e que pisais com botas imundas e ignorantes. Desconheceis que a camomila vos alivia o queimor, ou que a cidreira vos purga os gases. E assim viveis, aziados e flatulentos.

Desconheceis a terra que pisais, apesar do vosso porte de sapos arrogantes.

E vistes-me crescer, insaciável de saber, carregando já as rugas da Velha na minha testa, tal era o uso que eu dava à cabeça. E quando deixei de ser uma menina, quando os vossos filhos se deixavam enamorar quando eu passava, desdenhastes-me, evitastes-me.

Mas batíeis-me à janela do quarto, escondidos pela noite, para me mostrardes mazelas, feridas, inchaços, pápulas, vermelhões, tumores. E sabíeis que eu teria um chá, uma planta, um unguento que vos aliviasse.

 

Esperais que o calor derreta os vossos pecados?

Pois não viestes tantos de vós trazendo as filhas de arrasto? Prenhas de vida e arrependimento. Porque tinha de se “resolver a questão”, já que nem elas sabiam quem seria o pai ou, se sabiam, não era do vosso agrado, pois lhe faltavam terras, posses ou títulos.

E quantos dos vossos filhos e netos trouxe eu a este Mundo, com estas mãos agora trucidadas pelas cordas? Quantos salvei de se enforcarem no cordão? E quantas das vossas mulheres teriam partido se não tivésseis mandado chamar-me?

Até ao vosso gado eu acudi. “Deus me ajude que se eu perco esta vaca… Que vai ser de nós?” E nem perdestes vaca, nem vitelo, nem o sustento daquele ano.

 

Esperais que os meus gritos vos purifiquem?

Pois que agora me olhais com desprezo, porém já me olhastes com gratidão. Já me olhastes através de lágrimas de alívio. Já me deixastes à porta leite, bolos, legumes, cestos de fruta. Já rezastes a Deus pela minha saúde, pois a minha saúde seria também a vossa.

E, apesar de saberdes que a vossa vida, a da vossa família, a dos vossos filhos, a do vosso gado, não terminou graças ao meu saber e às minhas mãos, nenhum teve coragem de erguer a voz quando eles vieram.

Eles chegaram e perguntaram nesta e naquela porta, aproximando-se da minha janela aos poucos. Irromperam sem pedir permissão, exibindo o selo que eu já esperava enfrentar um dia.

Dizem eles que a Espada simboliza a justiça. Vos pergunto: é isto justiça? É justiça dar a comer ao fogo quem vos ajudou?

Dizem eles que a Oliveira simboliza a misericórdia. Vos pergunto: é isto misericórdia? É misericórdia negar o perdão a quem desconhece os seus pecados?

Lançaram-me perguntas com o chicote e, não descobrindo as respostas que procuravam no sangue que escorria dos vergões, levaram-me para o chão frio e húmido das santas celas. Depois, prenderam-me os punhos e os pés com mais interrogações e fizeram rodar a manivela esperando que respostas saltassem dos meus poros.

 

Esperais que a minha alma carregue as vossas falhas?

Não tenho vergonha de vos contar o que revelei. Confessei com palavras o que a dor me sussurrava. Confessei ser uma bruxa capaz de encantamentos vários, desde a sedução à maldição. Confessei ter sido violada por um demónio que, em troca, me emprestava os seus poderes místicos. Confessei ter bebido sangue de réptil para evitar envelhecer. Confessei ser mãe de mais de vinte crianças e as ter entregado todas aos inimigos da Igreja.

Confessei tudo aquilo que eu não sabia ser verdade, sem duvidar que fossem verdades, já que fizeram com que a dor amainasse.

Ainda sobravam, porém, alguns céticos que exigiram mais provas.

Então, ataram-me uma corda e atiraram-me ao rio. Podereis não acreditar, mas, ó feitiçaria das feitiçarias, flutuei! Como só uma bruxa poderia flutuar, pois um corpo pio afundar-se-ia como granito.

Agora aqui me vedes. Presa, vergada, marcada. Esperando que as tochas toquem a madeira que me suporta.

A Velha chamava-lhe “O Caminho”. Não me arrependo de o ter seguido. Pois que outra vida poderia ter sido a minha? Enveredar pelo mesmo nevoeiro obnubilado e terminar esposa de um de vós, temente de que a graça divina me reservasse desgraças e misérias, aceitando, sem questionar, os parcos conhecimentos que encherão as vossas sepulturas? Ou talvez morresse no primeiro parto, sem ninguém capaz de me acudir. Teriam sido menores as dores, mas mais escuras as sombras.

Percebo agora que “O Caminho” continuará a ser percorrido, por outras que virão depois de mim, com a mesma vontade, a mesma inevitabilidade.

Poderia apontar, entre cada um de vós, aqueles que me denunciaram, aqueles que confirmaram e aqueles que simplesmente calaram. Pois bem vejo o alívio que tentais esconder, já que esperais que, se eu me desfizer em cinza, também sejam carbonizados os segredos que partilhastes comigo. Os filhos bastardos, os adultérios, os abortos. E sabeis que ainda poderíeis precisar de mim. Porém, é maior o medo que a razão.

 

Esperais que o sofrimento seja só meu?

Não.

Pois agora que o fogo me toca, vós sentis as brasas queimar-vos os membros.

E é a minha pele que estala e contrai, mas é a vossa que berra por alívio.

E os músculos estrangulam os meus ossos, mas são os vossos que se partem com estrondo.

E as córneas opacificam-se, as lágrimas evaporam-se, mas sois vós que cegais.

E a minha alma sobe, libertando-se da carapaça disforme, mas a vossa não.

A vossa ficará presa a esse corpo inútil, até que o Inferno clame por ela.

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AUTOR(A)
Nuno Gonçalves
Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros desde há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro e a Medicina atraiu-o mais do que as letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literário durante alguns anos. Inicia agora, com pequenos passos, uma nova caminhada na escrita de ficção.

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