A Porteira - Teresa Dangerfield - ilustração (por Teresa Francez)

A porteira

“Se acender uma lamparina para uma outra pessoa, 

iluminará também o seu próprio caminho.”  

Nitiren Daishonin (1222 – 1282)

      Na bagagem alguns pertences e, mais que tudo, angústia, dor, tristeza, mas também a determinação de vencer. Partia rumo a um destino que não lhe era inteiramente desconhecido, pois fizera parte da sua infância e juventude. Guardava algumas memórias felizes, a que se agarrava com a força de quem não quer deixar ir a sua peça mais preciosa, não fosse quebrar-se, sem conserto, o fio que a prendia à vida.

      Para trás ficara o marido, prisioneiro das encruzilhadas da existência, tentando desfazer os nós que os levaram a perder quase tudo, até a própria casa. Os filhos, já homens, traçavam outros caminhos.

      Foi assim que, depois de uma entrevista dolorosa, se viu confinada num espaço tão pequeno que bastariam meia dúzia de passos para o percorrer de um lado ao outro. Nele teria que dormir, cozinhar, fazer a higiene. E estar de serviço. Sim, porque agora era porteira. Diziam-lhe que tivera sorte, por estar num sítio bonito — concordava, da sua porta avistava a Torre Eiffel — numa zona chique, e que nem teria de pagar renda de casa. Mas ela estava ciente de que tudo tinha um preço.

      De estatura média, cabelos louros pelos ombros, olhos verdes amendoados, Maria vestia-se com gosto e ninguém diria que já contava cinquenta e poucos anos. Poderia facilmente passar por uma estrela de cinema, sorridente, confiante, sem denunciar o que lhe ia na alma. 

      A mesma beleza que emanava também gostava de ver à sua volta. Por isso, decidiu fazer do seu espaço um cantinho especial. Com o primeiro ordenado comprou um sofá e almofadas; com o segundo uns cortinados, uma armação em forma de lareira e mais uns pequenos adornos. Assim, construiu o refúgio onde sonhava com a casa que gostaria de ter. 

      As portas do seu cantinho eram envidraçadas e davam para a escada, por onde passavam todos os que acediam ao edifício. Maria sentia-se numa montra. Comprou cortinas e colocou-as nos vidros. Escândalo! Madame Arnaud veio logo bater-lhe à porta:

— Maria, não pode tapar os vidros. Precisamos de saber que está aqui, de a ver. Faz parte do seu trabalho!

— Madame Arnaud, não entendo. Não deixo de fazer o meu trabalho lá por ter cortinas nos vidros. Não gosto de estar exposta — respondeu firmemente.

Madame Arnaud sentiu-se afrontada:

— Sempre foi assim e ninguém se queixou.

      Sendo a mais velha do grupo que geria o condomínio, Madame Arnaud sentia-se no direito de controlar tudo e todos. Por ela, Maria não teria sido escolhida. Nisto, espreitou para dentro da casa da porteira e abriu a boca de espanto.

— Posso entrar, posso ver? Está tudo com tanta…classe. Uma estante? Livros? Uma lareira? Quem fez isto?

— Eu, claro, Madame. Já que tenho de viver aqui, pelo menos que fique ao meu gosto. Estava tudo tão escuro!  

     Madame Arnaud foi-se embora a suspirar. Sentia-se ameaçada. Como é que uma porteira poderia ter aquele bom gosto, vestir-se tão bem, gostar de ler, ser tão elegante? 

     As escadas do prédio nunca estiveram tão limpas, os batentes da porta brilhavam, até o elevador de ferro parecia ter ganhado nova vida. A porteira tinha sempre tempo para ouvir todos. Havia os que se queixavam das dores, os que se queixavam dos dias perdidos e os que queriam conversar, só para iludir a solidão. 

     A pouco e pouco, foi conquistando os corações dos moradores daquele prédio. De quase todos. Na sua maioria mais velhos do que ela, viviam em apartamentos tão grandes que chegava a confessar que se perdia neles — a notícia do seu bom gosto tinha circulado e muitos contratavam os seus serviços.

      Madame Arnaud não se conformava com tamanha adoração. Havia de descobrir um segredo que poria a porteira no seu lugar. Sem o suspeitar, Maria continuava a ser o que sempre fora, honesta e trabalhadora. Distribuía carinho, punha tudo a brilhar à sua volta, e só o seu cantinho testemunhava as lágrimas que lhe lavavam a alma.

      Certa manhã, a porteira estava a lavar a entrada do prédio. Madame Arnaud saiu apressada, escorregou, caiu e não conseguiu levantar-se. Gemia com dores.

      Como Madame Arnaud vivia sozinha, Maria achou por bem acompanhá-la ao hospital, na ambulância. Mais tarde, comunicou com o filho da senhora, que se encontrava a trabalhar no Japão, informando-o de que a mãe fraturara o colo do fémur e teria de ficar internada. Como não lhe era possível voltar de imediato, o senhor acordou com a mãe que a porteira tomaria conta da casa e lhe prestaria auxílio até ele regressar. Relutante, Madame Arnaud entregou as chaves da casa a Maria e pediu-lhe que lhe trouxesse algumas roupas e artigos de higiene.

      Para Maria, era mais uma alma que precisava de ajuda. Faria tudo de boa vontade, não se preocupando com mais nada. Quando entrou no apartamento de Madame Arnaud, quase soltou um grito de espanto pelo que via na sua frente. Sacos de compras: Chanel, Louis Vuitton, Dior, Prada, Hermes espalhados por todo o lado. Primeiro pensou que estivessem vazios, mas depressa viu que não era o caso. Cheios de pó, já estariam ali há bastante tempo. Maria pensou: “Como é que esta senhora consegue mexer-se no meio de tamanha confusão? Vou ter que vir aqui uns dias e arrumar isto tudo. Ela até deve ficar contente quando voltar.’’

      Maria visitou Madame Arnaud no hospital várias vezes. Disseram-lhe que a senhora estava a ficar desmemoriada. Uma coisa Maria notava: continuava a ser pouco simpática para com todos e nunca agradecia nada.

      Entretanto, Maria limpara o apartamento de Madame Arnaud. Tirara o encardido dos vidros e a vista agora era mais clara. As carpetes estavam como novas e os sacos alinhados num canto, livres de pó. Parecia tudo mais vazio, mas bem mais aprazível — pusera ali o seu toque de magia.

      Passado quase um mês, Madame Arnaud voltou a casa. Mal entrou, ajudada por Maria, deu um grito de espanto. 

— O que fez à minha casa? Onde estão as minhas coisas? 

— Madame Arnauld, apenas limpei e arrumei. Está cá tudo o que é seu. 

— Isso é o que vamos ver! Saia já! E não volte a tocar em nada!

     Maria não percebeu aquela reação, mas desculpabilizou-a,  considerando qualquer possível efeito da anestesia e da medicação durante o internamento hospitalar. Acreditava que quando visse o conteúdo dos sacos, saberia que nada fora retirado. 

     O filho de Madame Arnaud chegou entretanto. Maria pensou que seria o fim das hostilidades. Qual não foi o seu espanto quando, passados uns dias, a polícia lhe bateu à porta com um mandado de busca.

— Deve ser engano — protestou Maria. — Podem explicar-me o que se passa?

— Temos ordens para revistar a sua casa. 

— Como? Porquê?

— Madame Arnaud apresentou uma queixa de furto no apartamento. O filho confirmou que a senhora seria a única pessoa a ter a chave, além dele.

     Maria, espantada, não queria acreditar no que estava a acontecer. Apesar de nada encontrarem, os polícias exigiram que se apresentasse na esquadra, no dia seguinte da parte da tarde, para ser interrogada.

     Teria de agir rapidamente. Saiu do seu cantinho, cuja paz estava agora aniquilada e dirigiu-se ao elevador. O coração batia-lhe como nunca, mas na sua mente algo estava bem claro: precisava de enfrentar Madame Arnaud, para que ela lhe dissesse, olhos nos olhos, de que a acusava. 

     Bateu à porta do apartamento do quinto andar direito. Apareceu o Senhor Arnaud.

— Preciso de falar com a sua mãe, por favor, Monsieur Arnaud.

— Pode entrar, mas desde já lhe digo que o caso é muito simples: as joias dela desapareceram e mais ninguém entrou aqui, a não ser a senhora.

— Joias? Que joias? — perguntou Maria já na presença de Madame Arnaud. O suor começou a rolar-lhe pelo rosto e apertou as mãos trémulas, indignada.

— Não se faça de desentendida, Maria — respondeu num tom áspero e amargo Madame Arnaud. — Desapareceu quase tudo! 

— Madame Arnaud! Não sei o que aconteceu às suas joias. A única coisa que tirei daqui foi o pó que havia por todo o lado. Sei que não gosta de mim, mas esta acusação não tem fundamento!

— Como se atreve? Não quero ouvir mais nada! Saia! E é melhor começar a procurar outro emprego.

     Tentado controlar as emoções que a invadiam, Maria regressou ao seu cantinho. Pensamentos desordenados invadiam-na sem alma, enquanto, sem pressa, o dia terminava. Embrulhada em cenários intimidadores, passou a noite em branco.

     Chegada a manhã, ergueu a cabeça, arranjou-se como de costume. Fez o trabalho rotineiro e foi com alguma estranheza que viu, ainda cedo, Madame Arnaud, sair acompanhada pelo filho.

     Para seu espanto, recebeu um telefonema da esquadra, cancelando o interrogatório dessa tarde. Iria receber mais informações oportunamente. Perto da hora do almoço, chegou um enorme ramo de lindíssimas rosas-chá. Pensou que seria para Madame Arnaud, embora não lhe conhecesse muitos amigos. Susteve a respiração quando viu que eram para si, com um bilhete de Madame Arnaud e do filho: “Querida Maria, perdoe-nos. Obrigada por tudo o que fez por nós.”.

    Maria nem queria acreditar e estranhou a “querida”. Rir? Chorar? Sentia vontade de tudo ao mesmo tempo. 

    Ao fim da tarde, recebeu um telefonema do Senhor Arnaud. Fora com a mãe ao banco, depositar o resto das joias num cofre forte e aí encontraram todas as outras que julgavam desaparecidas. Pediu-lhe perdão pela mãe, cuja demência se estava a tornar notória, e deixou claro que estaria sempre disponível para a ajudar, no que ela necessitasse. Um coração como o de Maria era capaz de perdoar.

      O futuro, não o sabemos. Cada um de nós poderá imaginar um destino para Maria. Eu vejo-a feliz e num palácio, construído com esforço e persistência, porque, seja onde for, esse será sempre o seu modo de estar na vida.

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AUTOR(A)
Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Foi docente do Ensino de Português no Reino Unido, onde reside há mais de 30 anos.  Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. É tradutora e dedica-se à escrita, uma paixão que a acompanha desde a infância. Para além das publicações na revista Palavrar, tem contos e alguns poemas integrados em coletâneas.

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