Olhava, de novo, o mapa manipulado inúmeras vezes e cheio de apontamentos escritos a lápis. Já havia anos que o estudava e conhecia de cor todos os lugares. Suspirou profundamente e, dobrando-o, voltou a colocá-lo na gaveta da secretária. Ficou ali sentada na cadeira giratória a observar o dia soalheiro pela janela. «Devia largar tudo e fazer o que sempre sonhei, de que é que eu estou à espera? Os paizinhos já não estão cá, nada me prende…Bom, vou espairecer e procurar o Afonso.»
Encontrou o amigo no ginásio onde se exercitavam. Combinaram ir beber um copo à saída. Os dois com quarenta e cinco anos conheciam-se desde a infância e partilharam apartamento em Lisboa enquanto frequentaram o Técnico. Afonso casara e descasara. Engenheiro de profissão, baixote, moreno e sempre de bem com a vida, era um bom camarada que via Constança como uma alma gémea com quem passava boa parte dos seus tempos livres. Ela sofrera um desgosto na altura da faculdade e desistira de relações amorosas. No seu rosto ovalado sobressaiam uns olhos muito verdes com pestanas enormes. Os cabelos castanho-escuros ondulados caiam-lhe sobre os ombros. Mulher alta, bonita e despachada, dedicara a sua vida ao trabalho e adorava viajar.
Não só foram beber uma caipirinha, como decidiram que precisavam também de um jantar. O ânimo era tal que a conversa durou até à uma da manhã. A ideia da viagem à Austrália caíra bem a Afonso, ele dispunha, todavia, de apenas três semanas devido ao trabalho e à filha de doze anos. Constança, no entanto, pretendia viajar por dois meses — era o seu país de sonho. Apesar da apreensão inicial, dispôs-se a pedir uma licença sem vencimento por esse período. Ficando sozinha, as probabilidades de conhecer mais pessoas aumentavam. Precisava de se alhear do seu trabalho de programadora numa multinacional.
Partiram nos primeiros dias de novembro, quando o calor já se ia fazendo sentir nos antípodas. Em Sydney, início da viagem, pernoitaram em casa de amigos e não podiam ter tido melhores cicerones para visitar esta cidade cosmopolita, recortada sobre o mar, formando um porto natural e a Casa da Ópera que ofusca qualquer monumento. Exploraram ainda nos arredores as praias Manly e Bondi, mecas do surf.
Percorreram de autocaravana a estrada de Sydney a Cairns junto à costa, parando nas inúmeras praias, muitas delas desertas, onde se banharam nas águas quentes e cristalinas sempre atentos aos tubarões, embora parecessem ser os únicos preocupados com os mesmos. Paragem obrigatória foram também algumas das cidades e vilas costeiras que constavam dos guias turísticos. No interior, descobriram parques com fauna e flora invulgares e vilas tipicamente australianas, com nomes tão estranhos como Woy-Woy. Deliraram com as experiências no país dos cangurus e coalas. Os aussies (diminutivo para australianos) com quem se cruzaram tiveram sempre tempo para dois dedos de conversa, oferecendo até as suas cervejas. Com uma pronúncia, por vezes, difícil de entender, abreviavam as palavras e usavam um calão único. No letreiro à porta de um restaurante em Byron Bay, zona hippie chique, proibiam os clientes de entrarem com thongs. No seu inglês britânico, Constança reconhecia a palavra como sendo calcinhas de senhora e não entendia. Puseram os fregueses todos a rir, depois de alguém lhes apontar para os pés e explicar que na Austrália eram chinelos. Mas, por fim entraram… com ténis! Passaram a anotar num caderninho as expressões mais emblemáticas.
Em Harvey Bay visitaram a ilha Fraser, maior ilha de areia do mundo, com nascentes naturais, zonas de floresta subtropical no interior e dingos, os cães selvagens australianos. Simpatizaram com os colegas da excursão, sobretudo com Steve e Michelle, oriundos de Perth. À pergunta usual sobre donde vinham, Afonso, sempre bem-humorado, respondera-lhes «From good old Portugal! Good Port wine!» fazendo Steve soltar uma gargalhada. Com cabelos encaracolados cor de palha e alguns brancos nas têmporas, o alegre aussie era um homem atraente, alto e atlético, com cerca de cinquenta anos, que contrariava a ideia alimentada pelos portugueses de que o australiano era só surf e cerveja. Michelle era a sua única filha. Rapariga adorável que se preparava para tirar o mestrado em Inglaterra e viajar pela Europa. A mulher de Steve morrera com um cancro quando ela tinha apenas dez anos e Steve educara-a sozinho com a ajuda dos pais. A sua firma em Perth, a Aussieland, formava pessoal em novas tecnologias.
Constança, perdida no seu olhar azul, não queria acreditar, era tudo demasiado para ela. «Ou é o destino a brincar ou já não sei o que pensar. No mesmo ramo de trabalho que eu?» O interesse de Steve por Portugal e pela nova amiga crescia a cada momento que passavam juntos. Sabendo que ela iria depois seguir viagem sozinha e que tencionava visitar ainda Melbourne, Adelaide e por último Perth, ele fez-lhe uma lista de hotéis onde pernoitar nas primeiras duas cidades e entregou-lhe o cartão de uma pousada nos arredores de Perth.
Voltaram a encontrar-se em Cairns onde os dias passaram a correr. Na pequena cidade tropical os quatro dedicaram-se a descobrir a região e os seus pontos de interesse. Visitaram os parques, as ilhas da barreira de coral, fizeram mergulho, snorkelling e apreciaram o fundo do mar nos barcos de casco transparente. Viajaram no trem cénico até Kuranda, regressando no teleférico que passava por cima da floresta tropical. Ambos os trajetos com vistas deslumbrantes. Na última noite viram um espetáculo aborígene. Após o show, Afonso simulou estar cansado e Michelle, percebendo a intenção, disse ao pai que também se ia deitar. A sós, Steve e Constança passearam pela praia, conversaram até o sol varrer as últimas sombras da noite e deixaram-se levar pelos sentimentos. A Constança tudo lhe parecia belo, a praia com palmeiras sobre ela debruçadas, Steve, a comida… enfim, perdia o fôlego, mas ao mesmo tempo sentia os pulmões cheios de vida. Com Steve passava-se algo semelhante, nunca conhecera ninguém que o tivesse cativado da forma como Constança o fizera. Sabiam que o futuro se mostrava difícil, por isso, aproveitaram o momento, sem arrependimentos e sem fazerem quaisquer promessas.
«Esquece os receios em relação a Steve e aproveita ao máximo a tua estadia e a companhia dele em Perth. Quero muito ver-te feliz!» Foram as últimas palavras de Afonso, antes da sua partida.
Constança seguiu para Melbourne e à sua espera no quarto tinha um ramo de rosas com um cartão lindo. Steve apareceu-lhe ainda no hotel uns dias depois, sem avisar, tornando memorável o fim de semana passado nesta cidade. Invadidos por um turbilhão de sentimentos, experimentavam uma falta de controlo que os assustava. Constança achava que os dois se estavam a envolver demasiado depressa. Homem perspicaz e sensato, o australiano propôs-lhe que ficasse a trabalhar com ele durante alguns meses, para verem como tudo evoluiria. Ela, mais assustada do que surpreendida com a proposta, adiou a decisão. Como programado, a portuguesa apanhou o comboio até Adelaide. Visitada a cidade, ainda acampou em Uluru, no centro do deserto, o cartão-postal da Austrália.
Steve não se conseguia concentrar no trabalho. Parecia um adolescente em alucinada felicidade. Estava ávido de paixão e só se recordava da sensação dos seus dedos na pele sedosa da portuguesa, das suas gargalhadas, da sua mirada cor de esmeralda. Os amigos notaram-lhe o brilho especial no olhar, coisa que há anos ninguém via.
Entretanto, Constança partiu para a última etapa da viagem. Do avião encantou-se com Perth. Sem o charme de Sydney ou a beleza tropical de Brisbane, era uma cidade acolhedora com o oceano Índico claríssimo a afagar-lhe as costas. Tomou um Uber no aeroporto e foi conduzida à pousada indicada por Steve. A excitação era muita. Não conseguira deixar de pensar nele desde Melbourne, de sentir os seus lábios quentes, as carícias fazendo estremecer o seu sangue…
Já fora da cidade, numa zona de campo, avistou uma grande propriedade com uma casa imponente em madeira. Estava rodeada de cavalos, num dos lados, e de um mar de videiras, no outro. Uma funcionária, trajando calções de caqui e uma camisa creme com o nome da pousada Kookaburra Lodge, veio ao seu encontro com um grande sorriso e cumprimentou-a com um G’Day. Viam-se alguns hóspedes junto à piscina. Ao conduzi-la ao quarto, a moça informou-a de que, naquela noite, Constança seria convidada do dono da propriedade para jantar. Ela agradeceu perguntando a si mesma se seria prática corrente daquela pousada o primeiro jantar ser oferecido pelo proprietário. Tomou um bom banho, descansou, vestiu um dos vestidos frescos de verão que trouxera e calçou umas sandálias a condizer. Às dezanove horas, como combinado, dirigiu-se ao salão.
Na lareira de aspeto rústico, uma pintura aborígene pendia da parede e dois pássaros Kookaburra decoravam a prateleira. No salão, a decoração era clássica, predominando os tons neutros e várias almofadas coloridas completavam os sofás confortáveis. A mesa para seis pessoas tinha apenas dois lugares postos. Sobre ela, destacava-se um par de velas em candelabros de prata e um centro de mesa com flores silvestres em tons amarelo e branco, que aliás decoravam também toda a sala. Perguntou à empregada se só ela tinha chegado naquele dia. Ela sorriu-lhe e confirmou. De repente ouviu em português com sotaque: «Bême-vindá mênina Constannssa!» O seu coração parou. «Hum?! Mas… eu conheço esta voz!» Voltou-se rapidamente e os seus olhos verdes surpreenderam-se ao encontrarem os azuis de Steve que trazia um ramo de lírios, a sua flor favorita. Abraçou-o, beijou-o, deixou-se abraçar, beijar, ria e chorava, sem conseguir dizer nada, sob uma chuva de palmas de todos quantos estavam na pousada. Lágrimas de emoção caíam-lhe pelas faces e as dúvidas que a assombravam dissiparam-se por completo.