Regresso a casa num horário diferente. Há poucas pessoas no autocarro. Estarão nos seus locais de trabalho. Trabalho, que já não tenho. A empresa teve um mau ano e a decisão foi despedir algumas pessoas, mas manter a frota de carros de alta cilindrada. Fui uma das visadas. Das duas secretárias, calhou-me a mim.
Chegamos. Com o vagar que me falta no dia-a-dia, entro na estação de metro, pelo menos não serei esmagada.
Sentada à janela, o movimento mostra-me pessoas, estações, tudo olho sem atenção. Saio na estação terminal, atravesso a estrada e estou em frente ao meu prédio. Os quarenta e oito m2 oferecem-me o aconchego de que preciso.
O último mês foi penoso, separei-me do Francisco e agora estou desempregada.
Fazer tudo certo. Estudar, tirar um curso, arranjar emprego, criar uma vida estável, dar aos que têm menos que nós, ser respeitosa, justa, ter compaixão, princípios que me foram incutidos e sempre segui.
Em momentos como estes interrogo-me se vale a pena ter ideais, escrúpulos, quando os que deles são desprovidos alcançam o que querem e sem aparente esforço. Detesto ter este tipo de pensamentos, que nada resolvem. Largo a mala, o casaco e o saco na entrada. Decido-me por tomar um duche. Na casa de banho, dispo-me e entro na cabine. A água quente relaxa o corpo, as gotas doces que caem misturam-se com as salgadas, abraçada pelo aroma de rosas, sereno. Saio do chuveiro com esperança renovada.
Confortável no meu pijama, vou até à cozinha aquecer comida que tinha no frigorífico e janto.
Após a refeição sento-me no sofá, na companhia de um copo de vinho tinto, a ouvir música. O vinho, em conjunto com o cansaço, tem o efeito esperado, sono. Deixo o copo vazio na sala, lavo os dentes e deito-me. Amanhã o sol volta a nascer.
***
Pelas nove e vinte cinco acordo. Sem pressa, levanto-me, abro as persianas e deixo o Sol entrar. Preparo torradas e chá. A cozinha é comprida, com porta numa ponta e, no lado oposto, janela. A mesa está junto à janela, a vista não é fantástica, mas a luz aquece-me.
Paulatinamente, lavo a louça, tomo banho, visto-me e saio.
Na entrada do prédio, verifico a caixa de correio.
— Bom dia, Simone. Está boazinha?
— Olá, dona Rosa. Com está?
— Numa quinta-feira, a estas horas aqui? Não esteve já de férias?
— Ainda tinha uns dias. Até logo.
Tal era a minha pressa para sair que nem reparo nas caixas de cartão, umas desdobradas, outras não e que tapam parcialmente a porta, tropeço nelas. À espera de sentir-me a beijar a calçada, sou amparada por algo forte.
A minha visão capta uns olhos castanhos, astutos e perspicazes, e um sorriso de menino malandro.
— Magoaste-te? Desculpa, as minhas caixas estão um bocado em cima da porta.
— Estou bem, obrigada.
— Sou o Leandro. E esta desordem é porque vou abrir um estúdio de tatuagens.
— Simone. Vivo aqui. — Notei que continuava a segurar os meus braços. Despedi-me e dirigi-me à estação de metro.
Vou até ao Parque das Nações, andar ao pé do rio. Caminhar faz-me bem. O rio e o sol afastam as sombras. Confio que vou conseguir ultrapassar este momento.
No regresso a casa, não há caixas à entrada. Um cartaz na porta anuncia a inauguração para amanhã.
***
Saí para ir à mercearia fazer umas compras. No retorno encontro Leandro à sua porta.
— Olá. Como hoje é dia de inauguração estou a fazer pequenas tatuagens de graça. Queres?
— Nem saberia o que fazer, ou onde. Mas desejo-te sucesso.
— Sucesso é relativo. Estou sempre a mudar-me. Vou onde preciso ir.
Aproxima-se um rapaz e a nossa conversa finaliza.
Entro no prédio a reflectir no que ele dissera e na forma como o proferira. Era como se me estivesse a dizer mais para além das palavras.
No sábado, uma amiga veio ter comigo e passamos a tarde juntas. No domingo dediquei-me às limpezas. Segunda-feira logo pensaria na ida ao centro de emprego, começar a enviar o curriculum e responder a anúncios.
***
Leandro está sentado na mesa do canto, a beber um café, quando entram na pastelaria a Rosa e a Joaquina, senhoras dos seus sessenta e oito e setenta e um anos, reformadas, e com tempo livre a mais. Escolhem ficar perto do pilar, para maior privacidade, sem se aperceberem quem ocupa a mesa meio escondida pela coluna.
— Esta semana tem saído a horas sempre diferentes e já tinha estado de férias. Aposto que a despediram.
— Achas mesmo, Rosa?
— Quase de certeza. Porquê não sei. Deve ter feito algo errado. Uma rapariga que cresceu sem pai, sem firmeza. A mãe dizia-se viúva, mas sabe-se lá.
— E agora temos esta gente esquisita a vir até à porta do nosso prédio. Todos pintados, com brincos no nariz, sobrancelhas. Só nos faltava esta.
— O dono também tem os braços e as mãos com tinta, um brinco no nariz e vários numa das orelhas, mas ao menos tem o cabelo rente e não anda com tranças, como é normal na raça deles. A barba e o bigode também estão curtos.
— Aquilo é gente que deve andar a fazer e a tomar o que não devem.
O olhar de Leandro não se altera, enquanto ouve os disparates proferidos por aquelas mulheres, sem raiva, o seu pensamento foi: A humanidade tem ainda tanto para crescer.
***
Os dias passam e Leandro observa Simone. Quando não está a trabalhar, tenta ir à porta para trocar um olá e algumas palavras. Num dia, a meio da tarde, por trás do balcão e de frente para a montra, vê Simone atravessar a estrada e dirigir-se ao sem-abrigo que se mudou recentemente para a estação de metro. Vê-a entregar-lhe uma sandes, uma maçã e um cobertor.
Quando a vê regressar vai até à porta e interpela-a.
— Olá, Simone. Entra, por favor.
— Precisas de alguma coisa?
— Queria perguntar-te se queres ir jantar comigo, amanhã?
— Sim. Podemos ir a um restaurante aqui perto. A especialidade deles são as espetadas. A de lulas e a de vitela são fantásticas. Dá para ir a pé.
— Como fecho às sete horas, teria de ser às oito.
— Sem problema. Venho ter aqui por volta das dezanove e quarenta?
— Ok.
Entram clientes na loja e Simone regressa à sua casa.
Sábado, encontram-se, como combinado. No restaurante envolvem-se em diálogo, deixando o empregado a fervilhar, por continuarem à mesa sem consumir.
— Querem algo mais?
— Não, pode trazer a conta, por favor. — Leandro sorri-me. — Estamos a ser expulsos.
Apesar de lhe sorrir, fiquei chateada, estava a gostar da nossa conversa, da energia entre nós. Convido-o a beber um copo em minha casa.
— Tens a certeza? Eu adoraria continuar na tua companhia.
Saímos do restaurante e caminhamos até à minha casa. O diálogo sobre filmes foi leve, mas havia mais intensidade entre nós. Chegados ao prédio, abri a porta de entrada e ele segurou-a para eu entrar. Já em casa, ajudou-me a despir o casaco e colocou-o, com o dele, no cabide de parede ao lado da porta.
— Tenho vinho tinto e um licor de chocolate.
— Vinho tinto. Eu abro a garrafa. Onde tens o saca-rolhas?
— Na gaveta, do teu lado esquerdo.
Retiro os copos da prateleira de cima e preparo uns frutos secos para acompanhar o vinho. Fomos para a sala e sentamo-nos no sofá, de copos na mão.
— Falaste-me de diferentes sítios onde tiveste o teu estúdio de tatuagens, há uma razão para andares sempre a mudar?
Vi-o ficar sério, olhar sem centro, enquanto abanava o vinho. Só quando os olhos se focaram em mim me respondeu.
— Algumas das minhas tatuagens são diferentes, poderosas, ajudam as pessoas que as têm. — Tomou um golo de vinho. — Além disso, sou o melhor tatuador.
Rimos e a carga elétrica ficou mais intensa. Ele poisou o copo na mesa, alcançou o meu e fez o mesmo.
Leandro pega na minha mão e os meus olhos fixam os dele. A minha respiração torna-se ofegante, mimicando a sua. A seguir beija-me, sem pressa, explorador. Beija o pescoço enquanto seus dedos vão percorrendo as minhas costas. Agarra a camisola e tira-ma, seguida da sua. Maravilhei-me com a tatuagem tribal que ia do ombro esquerdo até ao pulso. Abre o soutien e as suas mãos movem-me para os meus seios. Baixa a cabeça e captura o mamilo direito, a sensação foi tal que a senti no meu íntimo. Os meus dedos cravam-se nos ombros e agarro-me à cintura dele com as minhas pernas. Ele ergue-se comigo enlaçada nele e leva-nos até ao quarto. O carinho com que me poisa na cama é o mote para a noite, apesar da intensidade.
— Bom dia, linda.
— Que horas são?
— Isso importa? Hoje é dia de descansar, preguiçar e ser.
Acabámos por nos levantar, tomar banho e comer torradas com café.
Fomos até Belém. Almoçamos sopa, comemos um pastel de belém e passeamos à beira rio.
— Comentaste que estavas desempregada. Fazias o quê?
— Era secretária. Tirei a licenciatura em secretariado de direcção e administração. Já lá trabalhava há seis anos. Os últimos dois anos foram difíceis, sendo o último muito mau. Éramos duas, a decisão foi despedir-me.
— A outra, era mais antiga?
— Não, trabalhava lá há três anos.
Leandro questiona-me com o sobrolho levantado.
— Ela é amante do director. Por norma, pensa-se que a parte administrativa não é muito importante para a organização, ou que é fácil substituir por alguém mais novo, logo mais barato, no entanto, sem experiência, será muito mais oneroso para a empresa. Pelos administrativos passa toda a informação, fazem a ligação de todos os departamentos.
— Tiraste a licenciatura no público?
— Sim, tinha uma bolsa e trabalhava a tempo parcial. Como era só eu e a minha mãe, era preciso trabalhar.
— E o teu pai?
— Morreu quando eu tinha onze anos. Um ataque cardíaco. Ficámos só as duas. Ela teve vários trabalhos, mas, enquanto esteve num lar onde tratou de um senhor, a irmã dele gostou da minha mãe. Depois dele ter falecido, ela propôs à minha mãe cuidar dela, e assim foi até à sua morte. Para além do emprego, deixou-lhe o apartamento onde vivo. Tinha imóveis e o herdeiro era um sobrinho sem relação. Sou muito grata à dona Noémia pela generosidade, deixámos de nos preocupar com o pagamento de uma renda.
Leandro passa os dedos pela minha face até alcançar o pescoço, puxando-me para ele, e beija-me.
— Gostaria de te fazer uma tatuagem. Escolhida por mim. Mostro-te o desenho e se não gostares, altero o esboço até ficar ao teu gosto.
— Vamos ver no papel primeiro.
Ao regressarem a casa de Simone, Leandro começou a fazer o esboço da tatuagem, enquanto ela tratava do jantar. Comeram e ele apresentou-lhe o traçado, trocaram impressões e ela aceitou-o. No dia seguinte, pela manhã, a tatuagem ganhou vida na parte superior do braço esquerdo.
O espelho refletia um olho de mulher enquadrado por rosas e lírios. Aparentava estar a olhar diretamente para quem a observasse, a desvendar segredos.
Um mês depois, a tatuagem estava sarada e a loja fechada. Um acontecimento espantoso. As pessoas regressaram a casa no final do dia, a loja estava aberta e no dia seguinte ao saírem de casa já estava fechada. Vazia, como se durante a madrugada tivessem feito mudanças.
Dois dias depois, Simone recebeu a notícia de que era a escolhida para trabalhar numa das grandes consultoras.
O tempo flui, a dor de hoje amanhã é mais ténue. Meses idos, de regresso a casa, Simone repara num homem, agarrado ao poste do metro e a sua tatuagem que espreita pela camisa. Toca na sua e sorri. A minha tatuagem é diferente.
Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990