Roubei as palavras ao mundo e guardei-as na gaveta. Durante muito tempo seria esta a última frase escrita naquela folha de papel solta, atirada para um canto. Acontecera durante uma tarde chuvosa e fria, seguida de um anoitecer precoce. Igualmente sombrio se encontrava o espírito de Gael ao registar aquele pensamento.
Em criança vivia numa pequena cidade do interior, pintalgada de edifícios pomposos e pequenas casas térreas. Fora debruada a verde, amarelo e vermelho nos trilhos das árvores plantadas em redor. Para completar, no cimo da encosta onde nascera a cidade, aflorava o que restava de um castelo, edificado havia séculos.
Os sentidos de Gael despertavam com o mundo e, atento, escutava o que este lhe dizia. Acompanhava-o o sussurro das folhas das árvores que ondulavam com a brisa da manhã, quando ia para a escola: contavam histórias de quando eram pequenos arbustos e se quebravam facilmente. Outras vezes, cantava em dueto com as ondas do mar naquela praia onde passava as férias de verão. O mar dizia da sua imensidão e dos filhos que acolhia dentro de si. A chuva, viajante dos tempos e conhecedora da eternidade, falava do caminho que percorria desde o alto céu até às mais profundas rugas no solo. Quanto às ruínas do castelo, em tempos idos fortificação imponente, essas gostavam de contar histórias de guerreiros audazes e conquistas de outras eras. A bem da verdade, intimidavam-no. Não há que temer, nem torres nem muralhas — dizia-lhe o pai — todas podem ser vencidas, contornadas ou até destruídas. Mas aquele amontoado de pedras rudes, que Gael achava lhe podia cair em cima a qualquer momento, impunha respeito.
Tal como as escutava, o pequeno gostava também de contar as histórias do mundo, não perdendo a oportunidade de o fazer. Os adultos ouviam e sorriam, mas não davam mais importância.
Gael não compreendia a aparente falta de interesse. Sentia-se desolado. Assim, uma após outra, as histórias sonhadas esmoreciam. O rapaz foi crescendo e foi deixando de ouvir. Por fim, deixou também de contar. Roubei as palavras ao mundo e guardei-as na gaveta, escreveria mais tarde. Não sabia, ainda, que o mundo não gosta de estar fechado em gavetas.
***
Certa madrugada, ao abrir os olhos, Gael sentiu-se desconfortável e com sabor a terra nos lábios. Confuso, levou uns segundos a habituar-se à claridade e a perceber que estava deitado de barriga para baixo, num chão duro. Virou-se e, a custo, levantou-se. Não estava no quarto. Ficou assustado, sem perceber como ali tinha ido parar, sendo ali onde quer que fosse. Encontrava-se num caminho largo, de terra batida, campos a descoberto, com algumas árvores a avistarem-se ao longe. De resto, terra seca e a alvura do céu. Atrás de si havia um lanço de escadas feitas de pedra, sujas e gastas; estavam ladeadas de ciprestes com pontas que se uniam apontando para o céu, formando um túnel, em cujo início não se avistava o fim. Sem outro caminho mais desejável, começou a subir os degraus. Parecia deixar para trás a poeira que o cobria, respirando agora uma frescura oferecida pelas árvores. Levou alguns minutos a chegar ao cimo, onde o calor e a luminosidade contrastavam com o ar fresco oferecido pelos ciprestes.
Estava agora no que, aparentemente, fora a alcáçova de um castelo, do qual já pouco restava. As temíveis muralhas continuavam erguidas, entrecortadas por três pequenas torres ameadas e acompanhadas, aqui e ali, por pequenos aglomerados de pedras que tinham ruído. Embora se sentisse perdido, intuía que a sua presença cumpria uma missão. Apenas não sabia qual.
Nada a temer, recordava. Entrou, então, dentro da primeira torre, mais temeroso do que destemido. Penetrava, através da porta, a única claridade. Encontrou uma estátua de um deus. Os traços do rosto eram rudes, preenchidos por uma barba cerrada. Na cabeça, uma coroa que parecia pequena sobre a farta cabeleira. Vestia uma armadura e segurava uma lança tão alta quanto ele. Embora surpreso, Gael sossegou, era apenas uma estátua. Mas algo inesperado aconteceu. Esfregou os olhos, procurou ver nitidamente. Sim, era certo, a estátua respirava e começava a ganhar vida. O rapaz tremeu — o deus de pedra espreguiçou-se e no gesto tornou-se maior, um gigante aos olhos de Gael. Assombrado, deu um passo atrás e acabou por cair ao tropeçar nos próprios pés. Recusava acreditar no que os sentidos lhe diziam. Mas a estátua, agora viva, inclinou-se, até quase tocar o rosto do jovem. Como ousas despertar-me, pequeno insolente?
Curiosa troca de papéis esta, quando da pedra nasce vida e a vida jaz inerte; Gael queria fugir, mas o corpo não respondia ao que o cérebro ordenava. Sei quem és, continuava a estátua, és aquele que quer dar palavras ao mundo, enriquecê-lo. Um tremido e quase inaudível sim surgiu desesperado na voz de Gael. Não podes, disse bruscamente o deus. Ergueu-se e começou a andar de um lado para o outro. A cada passo a terra tremia, reacendendo em Gael o medo de pedras e muralhas caídas. O deus continuou a divagar: Só a nós está reservado esse papel. Que seria do mundo se meros humanos almejassem acima das suas virtudes? Somos nós que fazemos a história, vocês apenas passam por ela. E continuava, arrogante, a enaltecer os feitos dos deuses quando, de súbito, a adrenalina se fez sentir. Aproveitando um momento em que a estátua lhe virava costas, quase sem saber como, Gael deu um salto e correu para a porta, sem olhar para trás. Saiu da torre e continuou a correr, ofegante, até se encontrar no centro da alcáçova. O que é que acabara de acontecer? Enquanto recuperava o fôlego, tentava acalmar a mente. Olhou para trás, não fosse a estátua segui-lo. Mas nada saiu pela porta e, por momentos, sentiu-se a salvo. Olhou para as torres seguintes e depois para o túnel dos ciprestes. Surpreendeu-o a indecisão. Estaria a curiosidade a superar o medo? De modo algum, mas Gael sentia-se impelido a ficar. Parecia que, se saísse agora, alguma coisa ficaria inacabada. Nada a temer? Não sabia, mas mesmo assim avançou em direcção à segunda torre e entrou.
No centro encontrava-se a estátua de um demónio que irradiava uma luz vermelha. A pouca claridade que entrava pela porta passava despercebida. A figura tinha, na cabeça, dois pequenos chifres e os olhos, embora de pedra, pareciam perscrutar a alma do rapaz. Enrolada ao torso sobressaía uma cauda bifurcada, longa e fina, que só era ultrapassada, em comprimento, pelo tridente que agarrava na mão esquerda. Cauteloso, Gael esperava uma reacção. E, tal como acontecera antes, também esta estátua se espreguiçou, tornando-se colossal. Assustado, mas já não desprevenido, o jovem manteve-se imóvel. Ousas despertar-me, humano desprezível? Sei quem és…, começava assim o demónio o seu discurso. Gael esperava ouvir, resignado, o que antes lhe fora dito, queres dar palavras ao mundo, assombrá-lo, torná-lo maior. Iria agora ouvir falar do poder dos demónios e da insignificância dos humanos. De como os humanos nada podem ao invés dos demónios, poderosos imortais. É possível, replicou o gigante. O quê? Gael abriu os olhos, surpreso, não me vai dizer que sou um simples humano e isso está além da minha condição?
Claro que está além da tua condição, não passas de uma vil criatura terrena. Mas eu posso ajudar-te. Os olhos ardiam-lhe num fogo de vermelho vivo. Gael continuava atónito. Mas como? O demónio sorriu, perverso, basta que me dês algo em troca. Desconfiado, o jovem interrogava-se sobre o que lhe era pedido. Adivinhando o pensamento do pequeno humano, a estátua ergue os braços e, numa voz gutural, exige: A tua alma! Em sobressalto e percebendo o perigo, Gael fugiu sem perder tempo. Correu ligeiro sem olhar para trás até se encontrar, de novo, no meio da alcáçova, sentindo-se perdido e terrivelmente só.
Era agora certo, não tinha qualquer intenção de entrar em mais nenhuma torre. Era hora de regressar. Iniciou, assim, o caminho em direcção aos ciprestes quando notou que a entrada estava tapada por fortes e densos arbustos, como se sempre ali tivessem estado. Não havia qualquer abertura por onde Gael pudesse passar. Num profundo desalento, questionava-se sobre o propósito que o levara àquele lugar; fosse qual fosse, deixara agora bem claro que o jovem ainda não terminara a sua viagem. A terceira torre esperava-o. Descansou um pouco até que aceitou dar lugar à coragem e seguir caminho na sua desventura.
Preparou-se para conhecer uma terceira estátua e, decidido, entrou na última torre. Surpreso, descobriu-a vazia, tomada de uma quietude desconcertante. Era mais clara do que as anteriores, embora não se percebesse bem por onde entrava a luz. O silêncio era apenas interrompido pelo suave gorgolejar de fios de água que, nascendo nas ameias, corriam translúcidos em direcção ao solo. Eram suficientes para formar quase um espelho ao longo da parede. Gael esperou, andou para a frente e para trás, sem ver nada nem ninguém, a não ser o seu reflexo que, de vez em quando, aparecia nos fios de água. Por fim, saiu da torre. Nada mais havia a procurar.
Sem outro caminho de saída, regressou aos ciprestes, decidido a procurar uma abertura de acesso ao túnel. Foi com espanto que a encontrou livre e desimpedida. Gael sorriu aliviado, mas empreendeu a descida com o coração apertado; sentia que algo ficara por decifrar. Estaria o mundo a contar-lhe outra história? Convidá-lo-ia a escutar de novo? Embrenhado nos pensamentos, foi apanhado de surpresa ao ser abruptamente atirado ao chão. Os degraus de pedra tremeram ferozes, quebrando-se a meio. Os ciprestes, violentamente arrancados pelas raízes, já não olhavam o céu e caíam, agora, por enormes buracos abertos entre as pedras e a terra revolvida. Gael, caído, perdeu apoio e mergulhou numa escuridão assustadora que não chegava ao fim. Tudo se desmoronava, pedras, arbustos e terra. O coração de Gael batia acelerado, esperando tão só que o corpo, pesado, batesse em qualquer fundo. Mas o fundo não se avistava. Por fim, estremeceu e acordou.
***
Quase caiu da cama, tal o sobressalto com que despertara. Sentou-se, reavivando os sentidos. Adivinhava-se no quarto, em segurança, mas entorpecido — nunca um sonho lhe parecera tão real. Um raio de lua, ténue e brilhante, entrava pela janela, incidindo na secretária de Gael. As folhas em branco que por ali tinha clamavam por ele. Saltou da cama num ímpeto e sentou-se a escrever, não queria esquecer qualquer pormenor. Os ciprestes, as torres, as estátuas. Parou ao descrever a terceira torre. Continuava sem entender. Pela janela entreaberta percebia, ao longe, o perfil negro das ruínas do castelo. A lua cheia, triunfante, impunha a sua presença, parecendo querer bisbilhotar-lhe a escrita. Ao virar a cabeça, inadvertidamente, viu o seu reflexo no espelho que estava dependurado numa das paredes do quarto. O outro eu devolvia-lhe o olhar e prendia-o, como se hipnotizado estivesse. Entrava-lhe pela alma e pelo coração, de tão profundo que era. E assim, forçado, compreendeu. Tal como agora, também na terceira torre, Gael vira o próprio olhar e, naquele instante, tinha sido ele o ser magnífico e extraordinário. Venham deuses ou demónios, que a eles nada compete. Só a Gael. Seria tão só ele o responsável, se quisesse, por dar voz às palavras do mundo.
Estranhos modos tem o universo de se fazer ouvir. O sonho ensinara-o como a realidade nunca o fizera. Aprendera que, quando há sonhos, as gavetas não podem estar fechadas. Gael recordaria mais tarde, ao escrever a sua primeira obra, o dia em que enfrentara o medo e arriscara a ousadia: Não foi a realidade que me fez, foi o sonho que me ensinou. Abri, por fim, a gaveta e atirei as palavras ao mundo. Façam delas o que quiserem.
A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.