A Casa das Senhoras Rainhas…
Começava a chover quando chegou ao hotel.
Era o primeiro dia de inverno. Possivelmente, até escolhera aquele dia para o encontro para escrever essa frase no seu diário: ‘Era o primeiro dia de inverno… Ele chegou apressado, carregando um ramo de rosas, de olhar apaixonado…’
Não conseguiu que a imaginação terminasse o quadro.
Dirigiu-se à receção e perguntou por ele. Ainda não tinha chegado.
Despiu o casaco, um pouco molhado da chuva, e procurou um sítio naquela sala, onde pudesse esperar, confortavelmente. Acabou por escolher um sofá vermelho, no canto da divisão, desocupado, e virado para a entrada.
Era uma Casa acolhedora. A ‘Casa das Rainhas’…
Também a escolha daquele hotel não se devia ao acaso. Era uma mulher romântica e uma apreciadora da velha História de Portugal. Reis e rainhas, intrigas, mortes trágicas, amores de perdição…
‘Casa das Rainhas’, referira-se aos bens que os reis doavam às suas consortes, mas não, gostava de pensar numa casa real, física, onde as rainhas se passeavam, conversavam, e desabafavam entre si as suas paixões e as suas dores.
‘Será que Dulce de Aragão teria realmente, como escreveram, uma personalidade condizente com o nome, tranquila e modesta?
Ou amaldiçoaria, todos os dias, quem se lembrou de a usar como moeda de troca entre portugueses e castelhanos? E o que diria ela dos seus onze filhos?
E Dona Maria I, uma mulher da cultura e da ciência, confessaria o motivo da sua loucura?’
Rainhas…
Olhou à sua volta e procurou pontos comuns entre as mulheres que entravam naquele hotel e as rainhas dos tempos longínquos.
Reparou numa jovem, de aspeto angelical, que abraçava um ramo de rosas.
Imaginou-a de imediato como Isabel de Aragão. A rainha santa que transformou pão em rosas, para que o soberano, seu marido, não percebesse que alimentava os mais pobres.
‘Rosas em janeiro?’, desconfiou ele… Hoje temos rosas todo o ano. Já nem seria estranho.
O estranho talvez fosse mesmo encontrar alguém da ‘realeza’, como quem diz do poder, preocupado com o povo não ter pão.
De saída estava uma velha senhora, amparada pelo seu filho. Era mesmo muito velha, mas devia ser, na mesma proporção, muito rica e importante.
Os empregados do hotel giravam à sua volta, desfazendo-se em amabilidades. Até o próprio gerente lhe beijou a mão, em jeito de despedida. Este gesto fê-la lembrar a tétrica cerimónia do beija-mão à rainha Inês de Castro, na sua coroação, depois de morta. Talvez um castigo imposto por D. Pedro, por ter encontrado uma oposição tão grande a um amor ainda maior.
Cruzando-se com a decadente senhora, entrou uma jovem de mochila às costas, mas que exibia um aspeto culto e intelectual. Já na receção, pousou os livros que trazia sobre o balcão, ajeitou os óculos no nariz e perguntou pelo seu quarto, em inglês.
‘Seria uma Filipa de Lencastre dos nossos dias’, pensou ela, associando a imagem da estrangeira à rainha que viveu sob o clima inglês e literário de seu pai.
Sorriu para consigo ao reparar que os livros que a jovem carregava eram de poesia. Também esta rainha criara o seu próprio círculo de poetas.
Rainha…
Outros hóspedes sentavam-se e levantavam-se, entravam e saíam, e ela continuava ali.
O que pensariam eles? Será que imaginariam alguma história para ela também?
Com certeza que ninguém faria aquele jogo de a comparar a uma rainha.
No entanto, se o que a avó lhe contava em pequena fosse verdade…
Quando a encontrava a chorar por qualquer motivo, pegava nela, sentava-a no colo, e dizia-lhe: ‘Meu amor, uma mulher não chora. Muito menos quando tem sangue de rainha nas suas veias’.
Quando cresceu, apercebeu-se que a expressão comum era ‘Um homem não chora’, e quanto ao ter ‘sangue de rainha’…
Sempre muito curiosa da nossa História, logo resolveu aprofundar o assunto. No entanto, apenas descobriu que a única rainha que podia ter laços consigo era D. Leonor Teles. Também nascera em Trás-os-Montes, de onde era natural a família da sua avó materna. Mas era considerada uma mulher muito cruel e traiçoeira, traços que não reconhecia em si, nem na sua ancestral.
Um dia, quando esta se encontrava muito doente, perguntou-lhe se a sua antepassada de sangue real seria Leonor Teles.
A avó, no seu leito, já muito fraca e cansada, apenas lhe sorriu.
‘Mas, avó, contam que essa mulher era muito má!’, protestou, demasiado desgostosa da consanguinidade.
A velha senhora, tenaz defensora do seu género, apenas murmurou:
‘Meu amor, naqueles tempos, uma mulher que fosse forte e decidida, não era vista com bons olhos’.
Pouco tempo depois ficara sem a sua avó. E como sentia falta do seu colo e das suas palavras.
Triste rainha…
Interrompeu aquela divagação do imaginário para olhar o seu relógio.
Entraram e saíram casais. Grupos de jovens em animada cavaqueira. Homens de negócios.
Sempre que via chegar um vulto masculino pensava que era ele. Mas ele não chegava.
Não queria subir ao quarto sozinha. Tinha pensado num jantar especial, talvez no mesmo restaurante do ano passado. E depois num passeio calmo pelas históricas ruas de Óbidos, abraçados…
Mas chovia. E ele não chegava. Sentia que até o sofá já ‘engolia’ o seu corpo.
Voltou a olhar para o relógio. Passava largamente das nove horas da noite.
Pegou no telemóvel e ligou-lhe. Ninguém atendeu. Mandou uma mensagem e resolveu levantar-se. Saiu da porta do hotel e deambulou pelas arcadas da entrada. Fazia frio, mas parara de chover.
O telemóvel tocou, dando sinal de uma mensagem que chegava. Era dele. Não podia vir.
Nem sequer um telefonema. Nem sequer uma mentira piedosa.
O que poderia esperar de um amor proibido?
A sua avó poderia ter o sangue de D. Leonor Teles, mulher forte que decidira o seu próprio destino. Mas ela…
Pareceu-lhe ouvir alguém sussurrar-lhe ao ouvido: ‘Uma mulher não chora!’
Mas a sua alma gritava-lhe o contrário.
Nem conseguiu voltar para dentro, para cancelar a reserva. Vestiu o casaco, desceu a escadaria e entrou no seu carro.
‘Não, decididamente não seria uma sucessora daquela rainha. Seria mais alguém que acabara de perder o amor da sua vida. Não seria uma Leonor Teles. Seria uma Leonor de Aragão… uma ‘Triste Rainha’.