Anaïs Nin e Henry Miller

Anaïs Nin e Henry Miller

Todas as cartas de amor são ridículas, talvez porque, como James Joyce definiu no final de Ulisses, «o amor ama amar o amor». A constatação muda de figura quando, na década de 30 do século XX, dois candidatos a escritores decidem aliar à sua experimentação literária a procura de uma sintaxe para a paixão, a amizade e o sexo. Foi assim com a correspondência trocada durante duas décadas (1932-1953) entre Anaïs Nin (Paris, 1903-Los Angeles, 1977) e Henry Miller (NY, 1891-Califórnia, 1980). Um exemplo raro de parceria intelectual e fusão sexual e afectiva, entendidas por ambos também como fuga à convenção, destruição de tabus e afirmação de uma identidade e de uma voz individual. Primeiro editada pela Difel, com tradução de Manuel João Gomes, reaparece nas livrarias, pela Caleidoscópio (tradução de Tiago Marques), a compilação de mais de 250 exemplos de Cartas de Amor entre Nin e Miller, seleccionadas e prefaciadas por Gunther Stuhlmann em 1987.

Na introdução, Stuhlmann explica que a decifração, escolha e datação do material que lhe havia sido confiado por Anaïs obedeceu sobretudo ao «esforço para oferecer uma narrativa contínua», mais «romance literário» do que documento de uma paixão literata. É uma pena que, como diz, tenha deixado de parte «longas discussões acerca de Dostoiévski, Proust, Joyce, D. H. Lawrence; críticas pormenorizadas feitas ao trabalho em curso um do outro; reflexões acerca de filmes, livros, e assim por diante, frequentemente encaixadas em cartas de vinte ou mais páginas dactilografadas». O legado de afirmação feminina de Nin supera a mera autoria de literatura erótica e os epítetos agressivos que lhe colaram inclinações para a ninfomania, a poligamia, a bissexualidade ou, mesmo, o incesto. Miller foi bem mais do que um vagabundo boémio e libertino, predador sexual e autor de literatura durante anos banida nos EUA como de matriz pornográfica. O equívoco feito de lugares-comuns que envolveu durante décadas o nome e a relação dos dois pode até derivar da publicação póstuma da versão não expurgada dos diários de Anaïs e ter sido reforçado pelo sucesso do filme Henry & June (Philip Kaufman, 1990, com Maria de Medeiros no papel da escritora) ou da muito pouco reverente biografia Anaïs Nin, assinada, em 1995, por Deirdre Bair.

Aquilo a que Stuhlmann chama «material marginal à história pessoal» é, afinal, o mais interessante nesta correspondência compulsiva (só em 1932, ano em que se conheceram, Miller endereçou mais de 900 páginas a Anaïs). Um diálogo intelectual entre um homem e uma mulher num momento histórico muito importante, a batalha de explicação mútua entre duas pessoas que, muitas vezes em divergência teórica, ambicionam acima de tudo escrever uma literatura inovadora e apurada. O que as tornaria indestrutíveis, segundo Anaïs, era o facto de «no [seu] âmago, [estar] um escritor, não um ser humano». Na verdade, concretizaram mais percursoras tentativas de automaterialização do corpo mental e físico através da escrita do que um banal enredo com várias triangulações picantes.

Anaïs é talvez mais famosa pelas páginas eróticas de Passarinhos ou de Delta de Venus (traduzido por Luiza Neto Jorge, nos anos 80, para a Bertrand; reeditado pela Bico de Pena em 2006), livro que defendeu ter escrito apenas por questões de sobrevivência. Miller é identificado sobretudo pela autobiografia crua e pelo realismo brutal (para muitos, entendido ainda como mera ‘obscenidade’) de Trópico de Cancer (primeiro publicado em Paris, em 1934, e que muito deve ao apoio de Anaïs) ou Trópico de Capricórnio (1939). Pouco é reconhecido do esforço técnico das suas especulações quase-filosóficas, dramas simbólicos e associações surrealistas, presentes também na trilogia de «Rosa-Crucificação» (Sexus, 1949, Plexus, 1953, Nexus, 1960).

A biógrafa Deirdre Bair definiu Anaïs Nin como «uma grande autora menor». Igualmente com dificuldade Henry Miller será alguma vez aceite como autor relevante para os cânones literários mais exigentes. Produto da sua época, os dois escritores não resistiram à prova que o tempo fez do resultado literário daquilo que mais confiavam possuir: no caso dele, «talento», no dela, «instintos». Cartas de Amor mostra-nos, antes, a prevalência mútua da análise autobiográfica sobre qualquer outra motivação ou conquista literárias, com exemplo máximo em O Diário de Anaïs Nin (editado pela Bertrand, com introdução de G. Stuhlmann), registo que a escritora manteve dos 11 anos de idade até quase à morte. A herança de Nin e Miller concentra-se na força e originalidade da investigação de um passado individual, centro da criação de cada um deles. Uma espécie de autoetnografia, de esforço de recuperação do «tempo perdido» («Está tudo escrito em pedra», diz Miller), cuja dimensão mais íntima nos é dada a partir de um enredo de amor, entre duas pessoas sem medo do ‘sexo’ e com fome de liberdade perfeita, porque criativa.

A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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AUTOR(A)
Filipa Melo

Filipa Melo nasceu no Cuíto em 1972. É jornalista desde 1990 – altura em que integrou a equipa fundadora da Visão.

Colaborou em diversas publicações, Expresso, Grande Reportagem, Ler, Público (foi responsável pela edição do suplemento Mil Folhas), Diário de Notícias e O Independente. Na televisão foi jornalista e editora de vários programas e, em 2013, assinou a autoria e apresentação de Nós e os Clássicos, na SIC Notícias. Estreou-se na ficção com o romance Este É o Meu Corpo (2001), traduzido em sete línguas. Em 2015, dirigiu a revista Epicur e, no mesmo ano, publicou o livro de reportagem Os Últimos Marinheiros. Seguiu-se O Dicionário Sentimental do Adultério, na Quetzal, em 2017.

Atualmente, assina crítica literária na revista Ler e nos jornais Sol e “i”, coordena e ministra uma pós-graduação em Escrita de Ficção, na Universidade Lusófona, em Lisboa, e é vogal do conselho diretivo da Fundação Dom Luís I (Cascais).

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