Um, dois, três. O prédio tinha seis, só um apartamento por piso. Uma menina chorava na escada a caminho do quinto piso.
Arabela, de seis anos feitos há poucos dias, tinha um rosto de pele clara como neve, contrastando com o seu cabelo castanho aos caracóis, que lhe caíam em cascata sobre os ombros. Olhos espevitados mostravam o seu desembaraço.
De fundo, ouviam-se várias vozes e choros. Aquele prédio era como uma comunidade de entreajuda. Salvo alguns condóminos mais ressabiados, todos acabavam por se entender.
A mãe de Arabela, solteira, de trinta e dois anos, trabalhava numa empresa de gestão de condomínios, estando também a seu cargo o prédio onde habitava. Davam-se bem, ao ponto de as reuniões de condomínio onde discutiam os assuntos do prédio, terminarem sempre numa sessão de terapia, na qual falavam e partilhavam os seus problemas.
Nesse dia, a meio da manhã, a Dona Tina, mulher alcoviteira, recebeu um telefonema da polícia. Ficou atrapalhada com o que ouviu:
— Como? Mas…sim, conheço! Aiiiii, não pode ser — gritou.
— A Sra. sabe de algum familiar que possa vir reconhecer o corpo? — perguntou o polícia.
— Não Sr. Guarda, que eu saiba tem um primo no Equador e tem-nos a nós, moradores do prédio, como família, e uma filhinha que deixou na escola logo de manhã.
— Hum — retorquiu o polícia.
— Mas não se preocupe, Sr. Guarda, eu própria vou reconhecer o corpo.
E foi assim, que a menina ficou só e, ao mesmo tempo, com tantos pais adotivos. Chorava sem parar, na mão amarfanhava um papel, do qual só conseguia ler algumas palavras. A primeira reação fora a de correr para o quarto da mãe e abrir a gaveta da cómoda, quando a Dona Tina, sem saber muito bem como agir, a acarinhou, e disse:
— Querida menina, a mamã partiu para o céu, mas vais ter uma família especial que não te vai deixar.
Arabela foi para casa da Dona Tina, que vivia sozinha, até fazerem uma reunião para perceberem como iria ser o seu futuro. O papel que tinha na mão era uma carta que a mãe guardava num envelope e que sempre lhe dissera, um dia mais tarde, iria ajudar a perceber a história do seu nascimento.
No dia seguinte, depois do jantar e de a menina adormecer, reuniram-se todos no segundo andar em casa do casal Soares, para decidirem o seu futuro e lerem a carta:
Tiraram-te de dentro de mim, gritaste e levaram-te de seguida. Nesse momento tão belo, decidi que serias Arabela.
Fiquei triste porque não tinha ninguém para partilhar a minha alegria. Também não tinhas ali um pai, nem sabia se algum dia o irias conhecer.
Não interessa, és saudável e vou ensinar-te a seres uma menina cheia de alegria, com valores e educação, quero que tenhas as oportunidades que nunca consegui agarrar.
Vais conhecer as pessoas que moram no nosso prédio, são eles que nos maus momentos me têm ajudado a ultrapassar alguma dificuldade. Tenho a certeza de que te vão acarinhar.
Quero que saibas que és fruto de amor, e a entrega foi sentida. Tudo aconteceu numa noite quente depois de uma reunião de condomínio…
O teu pai é alguém do universo do condomínio, mas não queiras saber quem é, até para não estragar a vida a ninguém. Aconteceu, e tu já cá estás, vou dedicar-te todo o meu amor, és o que tenho de melhor. Se quiseres, condena-me.
Amo-te,
Mãe
A situação de Arabela foi sinalizada pelas autoridades. Ficou temporariamente ao cuidado da Dona Tina, que se mostrou logo interessada em ser sua tutora. A mãe morrera de doença súbita, tinha alguns problemas de saúde que nunca foram identificados.
Juntaram-se para explicar o melhor possível o que estava a acontecer, e prometeram nunca a deixarem sozinha. Ficou, então, com a sua protetora, que lhe arranjou o quarto para que se sentisse confortável.
Passado um ano, e após todas as audiências para comprovar que a Dona Tina reunia condições e teria capacidades para a educação da menor, Arabela foi adotada legalmente. Foi um dia de festa, em que todos os condóminos que ajudavam nas despesas e em proporcionar o melhor à menina, conseguiram ficar descansados.
Arabela foi crescendo, com a atenção das famílias e pais adotivos, como lhes chamava. Na escola as outras crianças perguntavam-lhe por que motivo falava de vários pais, o que explicava da melhor forma que conseguia.
Numa noite em que, já no seu quarto, sentiu sede e foi à cozinha, ouviu a Dona Tina conversar com a Dona Cristina do quarto piso, advogada, com um filho da sua idade:
— Amanhã a Arabela completa catorze anos, vamos fazer-lhe uma festa surpresa. Está a ficar uma bonita adolescente, inteligente e compreensiva. Daqui por uns tempos podemos falar com ela, para saber se quer ficar a saber quem é o pai bilógico, através de um teste ADN — dizia a Dona Cristina.
— Concordo, mesmo sendo um tema muito sensível, temos de colocar essa questão, não deixando de acreditar que pode comprometer o relacionamento de algum dos casais —comentava a Dona Tina.
Arabela escutara toda a conversa, voltou para a sua cama e passou a noite a pensar no que ouvira. Então também poderia ter um irmão ou irmã. Tinha um fraquinho pelo Miguel, filho do engenheiro Afonso e da Dona Guida do quinto piso. Agora essa situação seria mais complicada, uma vez que poderia ser sua irmã.
Acordou com um raio de sol que, sorrateiro, entrava através da cortina cor-de-rosa. Esfregou os olhos, esticou os braços, puxou o lençol para trás, e fez-se luz: “Hoje é o meu aniversário”, pensou. Não estava contente, nem triste, apenas sentia um aperto no peito que a sufocava de mansinho e lhe atordoava os pensamentos. Saltou da cama de repelão e, descalça, dirigiu-se à cozinha, onde a Dona Tina preparava umas panquecas com mel.
— Bom dia, minha menina, parabéns! – cumprimentou afetuosa, com dois sonoros beijos na face de Arabela.
— Bom dia, mamã Tina, muito obrigada!
“Hoje acordei estranha, não sei como me sinto”, pensou para consigo, mas resolveu não dizer nada.
— Logo vou apanhar-te na escola e conversamos melhor, agora toma o teu pequeno almoço.
Eram dezassete e cinco. À porta da escola a Dona Tina, toda aperaltada, sorria feliz, até tinha ido ao cabeleireiro.
— Como correram as aulas hoje?
— Até a diretora de turma me deu os parabéns e os meus colegas começaram na brincadeira a cantar, foi bom!
Na chegada à porta de casa, foi conduzida para o quinto piso. Curiosa, manteve-se em silêncio. A casa do engenheiro era a maior, tinha um bonito terraço, onde faziam uns belos churrascos.
Tocaram à campainha, a porta abriu-se de imediato e todos os inquilinos daquele prédio saltaram para a abraçar. Na entrada uma fita cor de rosa, ladeada de balões coloridos, dizia: “Parabéns!”
Pensou de imediato: “Não vou fazer desfeita aos meus pais, vou esperar até ao dia em que quiserem falar comigo”.
A festa prolongou-se, e todos estavam envolvidos no espírito festivo. Arabela, radiante, abria os presentes que cada um lhe ia entregando, corria de um lado para o outro, abraçando e distribuindo beijos por todos. Sentia-se amada e acarinhada. Estava eufórica!
O tempo foi passando. No entanto, na cabeça da menina afloravam pensamentos sobre a conversa de quem seria o seu pai. Embora não lhe tirasse o sono, queria saber se teria um irmão.
Chegou finalmente o dia. Era verão e estava calor. Juntaram-se no terraço, e com refrescos, doces e petiscos o ambiente estava criado para falarem com Arabela. Foi contada a história desde que a mãe fora habitar o prédio, assim como o momento em que aparecera grávida, e a incógnita sobre o pai, até que a Dona Cristina lhe perguntou:
— Arabela, gostavas de saber quem é o teu pai? Se quiseres, podes tentar saber através de teste de ADN.
Um momento intenso, em que a menina de olhos esbugalhados, nem sabia o que dizer, apenas soltou uma frase:
— Não quero fazer nenhum teste, os meus pais são todos vocês, para mim chega.— Arabela saiu a correr.
No fundo, queria saber quem era o pai, porém, o fato de colocar em causa uma das suas famílias não a deixava avançar com a ideia. Estava feliz e revoltada, sentimentos que não eram fáceis de conciliar. Atravessava-se-lhe na cabeça uma questão: seria Miguel seu irmão?, Andavam na mesma escola e sabia que namoriscava uma colega de outra turma. Quando os avistava juntos, o seu coração ficava corroído de ciúme.
Passaram dias, meses e anos, Arabela acabara de fazer dezoito anos. Miguel tinha namorada e Arabela ainda não conseguira gostar de mais ninguém. Eram muito amigos e Miguel contava-lhe as suas aventuras, não desconfiando do sentimento que a amiga nutria por si.
Certo dia, perto do Natal, um amigo comum às famílias, que já vivera no prédio, e que, para além de visita assídua, participava nas festas e reuniões, sempre com muita animação, apareceu morto em sua casa. Deixou todos bastante chocados.
Depois das perícias efetuadas pela policia, chegaram à conclusão de que fora suicídio. Vivia sozinho no prédio ao lado, e ninguém se apercebera de que estava num momento mais depressivo, embora soubessem que era acompanhado em consultas de psiquiatria e psicologia. Nem haviam dado conta que transportava consigo um segredo de muitos anos, até que a polícia, em busca por resposta, encontrou uma carta fechada com o nome de Arabela no envelope.
Ao abrirem o envelope, pensando que encontrariam algo que os fizesse perceber os porquês, ficaram perplexos com o conteúdo:
Olá Filha,
Desculpa por ser um cobarde… Nunca quis assumir contigo as minhas responsabilidades. Sabia que depois da tua mãe falecer continuavas a ter não uma, mas cinco famílias que sempre te trataram bem, transmitindo-te os melhores valores. Embora de longe, sempre estive perto de ti.
Não me odeies, no entanto também não me sintia digno ao colocar em questão a vida familiar de todos os meus amigos.
Queria dar-te esta carta nos teus dezoito anos, na esperança de que me compreendas. Entretanto, foi-me diagonisticado um tumor maligno em estado muito avançado. Não quero sofrer nem ver o teu sofrimento. Vais receber na mesma a carta, não através de mim, mas de quem a encontrar.
Precisas saber que, embora não me dando a conhecer, sempre te amei na sombra.
Nada mais faz sentido, segue o teu caminho com todos aqueles que te amam.
Até um sempre!
Teu pai…
A polícia judiciária, contatou a Dona Tina entregando-lhe a carta, uma vez que fora confirmado o suicídio.
Houve nova reunião no edifício, não só para dar a conhecer os factos da morte, como também para que Arabela ficasse a saber quem fora o seu pai e ler a carta para todos, se assim o desejasse.
Nessa noite chorou de revolta e pesar, por vir a saber da pior forma a identidade do seu pai biológico. Questionou-se sobre não poder crescer, como os seus amigos no seio de uma verdadeira família, e ter uma de acolhimento, como chamava aos seus pais do coração.
A menina fez-se mulher e optou por continuar a viver com a Dona Tina, sendo nessa fase também sua cuidadora, uma vez que esta já tinha uma idade avançada. Tirou um curso superior ao mesmo tempo que trabalhava. Finalmente, o seu sonho cumpriu-se e num dia em que o sol brilhava, para alegria de todos, casou-se com o Miguel.