Autor(a):

Carolina Cordeiro

As palavras não saem

As palavras não saem, raios! O tempo escasseia, não consigo fazer sair uma palavra. A ser uma qualquer, decerto já teria saído. Palavras na boca não me faltam, o problema é que preciso daquela palavra no papel. É a palavra certa para que tudo volte a ficar perfeito. Sim, perfeito será! Feito é bom, mas não é melhor que perfeito e sem essa palavra que corre à minha frente, sem que lhe apanhe rasto, o trabalho vai estar apenas feito. Não pode. Já não pode.

Sentou-se à beira da cadeira, tentando afastar-se um pouco do tampo de madeira que servia de mesa, enquanto se preparava para mais uma corrida. A meta era acabar a frase e, ao fazê-lo, acabaria aquele parágrafo e tudo estaria perfeito para todo o sempre. Seria a última mostra de perfeição. Esta procura da palavra estava a sugar-lhe os ânimos.

Ajeitou-se na cadeira, que começou a balançar — ora para a frente,  ora para trás — , à procura de um equilíbrio que ainda não conseguira alcançar. Na sua frente, posicionado a jeito de se olhar sempre que pretendesse, poisava um espelho daqueles que aumentam a figura, não fosse ele esquecer que as palavras que escrevera foram sempre as suas, de si. Se estendesse a mão direita encontraria o seu amicíssimo lápis anão, e com a sua mão esquerda tocaria na borracha desusada. Estava tudo preparado para a eventualidade dele conseguir começar algum movimento. Pouco mais há a retratar daquele espaço.  O homem enchia-o de tal forma que, mesmo com o seu corpo franzino, a sala que outrora vira saraus eternos, encapuçava-se perante a labuta daquela procura. Só o corpo humano bastaria para escrever a próxima perfeição.

Começara assim na sua juventude, fechado sobre si mesmo, numa existência eremítica e dessa sua prática saíra-lhe o seu melhor trabalho, a que tantas e tantas vezes se aludira como o novo grande contributo para a humanidade. Naquele então, o mundo rendeu-se a seus pés, as extravagâncias desse mundo foram-lhe concedidas e os elogios subiram ao éter. Ascenderam os gabos e a sua importância. Os louvaminhas, esses voltaram à terra numa correria, mas ele não. Permaneceu na sua passarola, à espera do novo poiso. Mas o passado não se apaga, esquece-se, talvez. Ele fora esquecido, sabia. Mas também sabia que seria lembrado, assim que acabasse o seu novo empreendimento, assim que encontrasse aquela palavra que tanto procurava.

Lembrara-se, certa vez, de ir à caça da palavra num dicionário que tinha lá por casa. Levou dias e dias à procura do livro, encontrando-o a jeito de pé de cama. Logo aí, elevou-se mais uma tormenta: perder o horizontal da cama ou encontrar a palavra. Dias passaram enquanto não se resolvia. Decidiu-se por perder o equilíbrio do sono e resgatou o dicionário do chão. Mas a sorte, quando vem, nunca vem por inteira. De tanto tempo lá ter estado no chão, como se se queixasse do seu pobre destino, o dicionário resolveu dividir-se e o homem só conseguiu trazer consigo metade das folhas com letras muito precárias. Agora, olhando ora para o chão, ora para a mão, apercebera-se que nem palavra nem equilíbrio. O não saber como fazer as coisas parou-lhe o pensamento e não lhe estorvou a mudar de ação até que não voltasse a ter vontade. O cuco da parede cantara, cantava, cantou, cantaria até deixar de cantar. E, só por ter tido necessidade extrema de se aliviar é que o homem encontrara, no sítio mais remoto da sua casa de banho, uma lupa que lhe servira para aparar os bigodes. Agora que a barba já não crescia sem remédio, a lupa serviria para que ele procurasse a palavra. Deitou-se de ossos pregados ao chão e passou dias a ler as minúsculas letras das folhas que sustentavam a sua procura.

Na busca de palavras, encontrou “retrato” e foi investigar se no seu semblante haveria palavra escondida. Não encontrou. De volta às folhas, encontrou “santo” e correu ao seu altar secular para ser regalado pela providência e encontrar a palavra escondida. Nada encontrou. Nas idas e vindas entre as palavras das páginas bolorentas, encontrara os nomes da meninice “Tiago”, “Ulisses”, “Veríssimos”, “Walter”, “Xavier”, “Yago” e “Zé” e em nenhuma das fotos dos álbuns foi capaz de encontrar a tal palavra que tanto desejava. Acabou-se-lhe o dicionário e nada fora capaz de sossegar a procura. Desistir era o melhor remédio, assim pensou ele por tempos indeterminados.

O tempo batia a cada badalada e o som do cuco ia esmorecendo. Mas eis que todas as nuvens que sobravam no céu fizeram um lugar por onde um raio pequeno de sol começava a fazer-se sentir. Poderia ser hoje. Era hoje! Gritava o homem pelo casario vazio, lembrando-se que se não havia palavra que o ajudasse. Teria que ser ele a resistir e a ajudar a palavra. Faria nascer todo um novo léxico que pudesse encaixar na sua última linha. E, se no início era o verbo, então começou ele pelo “palavrar”.

 

 

 

  SINOPSE:

Um escritor, outrora famoso, busca incessantemente a sua nova grande obra, dentro do universo que criara para si mesmo. Será uma procura que levará o leitor a mapear a decrepitude do espaço em que esta personagem habita e a aventurar-se na demanda do  Santo Graal dos escritores: a palavra perfeita para o sucesso.

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AUTOR(A)
Carolina Cordeiro

Carolina Cordeiro nasceu em Ponta Delgada, a 2 de abril de 1979. É licenciada em Estudos Portugueses e Ingleses, pós-graduada e Mestre em Língua Portuguesa, e é professora de Português e de Inglês.

Publicou os seus primeiros poemas na coletânea TheInternationalWho’sWho in Poetry(InternationalLibraryofPoetry. 2004). Em 2012, publicou o seu primeiro livro de poesia Invictas Brotassem, sob o pseudónimo Clarice Nunes-Dorval, com a chancela da Chiado Editora. Em 2013, participou na Antologia de Poesia Contemporânea “Entre o Sono e o Sonho”, VolIV (Chiado Editora) bem como na Antologia Nós Poetas Editamos — PARTE V (2014). Em 2013, editou o primeiro romance histórico No Meu Tempo (PastelariaStudios); e, em 2015, apresentou o segundo volume, o romance Naquele Tempo, pela Letras Lavadas. Em 2020, publicou um diário 3.6.5 Ou Um Dia de Cada Vez, também pela Letras Lavadas. Tem participado regularmente em diversas revistas e jornais literários tanto regionais como nacionais.

Participa ativamente no AzoresFringe Festival, um festival internacional de Artes; em 2014 foi a vencedora do concurso de poemas Calendário Artelogy 2014; e, em 2016, foi a vencedora da 4ª edição do Prémio de Escrita MiratecArts com o conto “Conto da Mulher de Cordas”

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