As palavras não saem, raios! O tempo escasseia, não consigo fazer sair uma palavra. A ser uma qualquer, decerto já teria saído. Palavras na boca não me faltam, o problema é que preciso daquela palavra no papel. É a palavra certa para que tudo volte a ficar perfeito. Sim, perfeito será! Feito é bom, mas não é melhor que perfeito e sem essa palavra que corre à minha frente, sem que lhe apanhe rasto, o trabalho vai estar apenas feito. Não pode. Já não pode.
Sentou-se à beira da cadeira, tentando afastar-se um pouco do tampo de madeira que servia de mesa, enquanto se preparava para mais uma corrida. A meta era acabar a frase e, ao fazê-lo, acabaria aquele parágrafo e tudo estaria perfeito para todo o sempre. Seria a última mostra de perfeição. Esta procura da palavra estava a sugar-lhe os ânimos.
Ajeitou-se na cadeira, que começou a balançar — ora para a frente, ora para trás — , à procura de um equilíbrio que ainda não conseguira alcançar. Na sua frente, posicionado a jeito de se olhar sempre que pretendesse, poisava um espelho daqueles que aumentam a figura, não fosse ele esquecer que as palavras que escrevera foram sempre as suas, de si. Se estendesse a mão direita encontraria o seu amicíssimo lápis anão, e com a sua mão esquerda tocaria na borracha desusada. Estava tudo preparado para a eventualidade dele conseguir começar algum movimento. Pouco mais há a retratar daquele espaço. O homem enchia-o de tal forma que, mesmo com o seu corpo franzino, a sala que outrora vira saraus eternos, encapuçava-se perante a labuta daquela procura. Só o corpo humano bastaria para escrever a próxima perfeição.
Começara assim na sua juventude, fechado sobre si mesmo, numa existência eremítica e dessa sua prática saíra-lhe o seu melhor trabalho, a que tantas e tantas vezes se aludira como o novo grande contributo para a humanidade. Naquele então, o mundo rendeu-se a seus pés, as extravagâncias desse mundo foram-lhe concedidas e os elogios subiram ao éter. Ascenderam os gabos e a sua importância. Os louvaminhas, esses voltaram à terra numa correria, mas ele não. Permaneceu na sua passarola, à espera do novo poiso. Mas o passado não se apaga, esquece-se, talvez. Ele fora esquecido, sabia. Mas também sabia que seria lembrado, assim que acabasse o seu novo empreendimento, assim que encontrasse aquela palavra que tanto procurava.
Lembrara-se, certa vez, de ir à caça da palavra num dicionário que tinha lá por casa. Levou dias e dias à procura do livro, encontrando-o a jeito de pé de cama. Logo aí, elevou-se mais uma tormenta: perder o horizontal da cama ou encontrar a palavra. Dias passaram enquanto não se resolvia. Decidiu-se por perder o equilíbrio do sono e resgatou o dicionário do chão. Mas a sorte, quando vem, nunca vem por inteira. De tanto tempo lá ter estado no chão, como se se queixasse do seu pobre destino, o dicionário resolveu dividir-se e o homem só conseguiu trazer consigo metade das folhas com letras muito precárias. Agora, olhando ora para o chão, ora para a mão, apercebera-se que nem palavra nem equilíbrio. O não saber como fazer as coisas parou-lhe o pensamento e não lhe estorvou a mudar de ação até que não voltasse a ter vontade. O cuco da parede cantara, cantava, cantou, cantaria até deixar de cantar. E, só por ter tido necessidade extrema de se aliviar é que o homem encontrara, no sítio mais remoto da sua casa de banho, uma lupa que lhe servira para aparar os bigodes. Agora que a barba já não crescia sem remédio, a lupa serviria para que ele procurasse a palavra. Deitou-se de ossos pregados ao chão e passou dias a ler as minúsculas letras das folhas que sustentavam a sua procura.
Na busca de palavras, encontrou “retrato” e foi investigar se no seu semblante haveria palavra escondida. Não encontrou. De volta às folhas, encontrou “santo” e correu ao seu altar secular para ser regalado pela providência e encontrar a palavra escondida. Nada encontrou. Nas idas e vindas entre as palavras das páginas bolorentas, encontrara os nomes da meninice “Tiago”, “Ulisses”, “Veríssimos”, “Walter”, “Xavier”, “Yago” e “Zé” e em nenhuma das fotos dos álbuns foi capaz de encontrar a tal palavra que tanto desejava. Acabou-se-lhe o dicionário e nada fora capaz de sossegar a procura. Desistir era o melhor remédio, assim pensou ele por tempos indeterminados.
O tempo batia a cada badalada e o som do cuco ia esmorecendo. Mas eis que todas as nuvens que sobravam no céu fizeram um lugar por onde um raio pequeno de sol começava a fazer-se sentir. Poderia ser hoje. Era hoje! Gritava o homem pelo casario vazio, lembrando-se que se não havia palavra que o ajudasse. Teria que ser ele a resistir e a ajudar a palavra. Faria nascer todo um novo léxico que pudesse encaixar na sua última linha. E, se no início era o verbo, então começou ele pelo “palavrar”.
SINOPSE:
Um escritor, outrora famoso, busca incessantemente a sua nova grande obra, dentro do universo que criara para si mesmo. Será uma procura que levará o leitor a mapear a decrepitude do espaço em que esta personagem habita e a aventurar-se na demanda do Santo Graal dos escritores: a palavra perfeita para o sucesso.