São pontos negros embrenhados no verde resistente aos tempos de trevas. São o vestido da paisagem em movimentos retóricos. Famintos e conscientes da tabidez só voam em desespero para não desperdiçar as forças. Nas árvores, nas ervas, no cume das casas, movem-se quando o vento passa e agita as suas penas. Ocultam o corpito tísico, poupando-o para os voos urgentes. É mais fácil assim, leve, mas a energia não se acumula. Nada está em conformidade. Tempo árduo.
Um daqueles pontos negros ousou pensar em visitar a torre. A ideia já tinha surgido várias vezes. Emana ditos que se querem verídicos: fartura soberba durante dias, semanas, meses, o reconhecimento de seres no mundo.
Poderia passar uma semana à procura de uma migalha, de um ratito que se aventurasse na rua, coisa rara. Eram tantos na procura incessante. Tinha de ser o mais persistente. Quando todos dormiam, continuava vigiando cada rua, cada canto breu, à procura do engano às suas forças. Se o encontrava, nem um segundo demorava a engolir, escondendo um grasnar de euforia curta, a sobrevivência.
Nas árvores onde se esconde, observa as casas umas em cima das outras. Vê as pessoas a atirarem imundices janelas fora, para os caminhos estreitos e escuros. A chuva cai e escorre para o rio. Não se admira que as pessoas andem cabisbaixas com braços inúteis. Sem asas, para onde vão? Não voam independentes dos passos da história, do sistema ou de si mesmas. Outras procuram a mudança, mas vão lavar o corpo ao rio, nauseabundo, que as prende ao fundo. Porque não caminham então em direção à torre? Oh! Corpos inertes! Choram e morrem nos cantos.
No dia seguinte partiria, enquanto tinha forças para voar.
— Já visitaste a torre? — perguntaram-lhe.
— Não, dizem que o fulgor lá se esconde, as gentes se arredondam e os corvos não regressam — fez uma vénia involuntária, desequilibrou-se. Disfarçou com dois passos curtos subindo o ramo e, num crocitar rouco, disse — Quem quer vir comigo?
Os corvos focaram os seus olhos pretos com admiração, outros com escarnecer grasnaram e bateram as asas sem levantar voo.
— Cuá! Cuá! Cuá! Olha lá quem quer ser rei!
— Partirei amanhã! — enfiou o bico nas penas. Tantas vezes exaltou esta frase, num grito de coragem. Acabava sempre por se acabrunhar. O medo também é dono.
De madrugada, sem contas nem previsões, partiu. Voou, com movimentos atabalhoados, longe da perfeição. Ia, só isso já lhe acrescentava um vigor inexplicável. O nevoeiro foi descendo, continuou na direção certa. Um vento repentino deu-lhe dez voltas ao corpito. Sem norte nem sul, não sabia mais por onde seguir.
Desceu à terra. Não encontrou abrigo, só as ervas rasteiras de um prado já muito mexido. Sentiu os pingos da chuva, cravavam-se nas penas pretas, rebentavam a terra à sua volta, formando uma cova.
Quando o nevoeiro desapareceu, sacudiu as asas e partiu em direção à torre, sem olhar para trás. Se o tivesse feito, veria a fartura. A chuva intensificou-se durante a noite. Com as casas inundadas, os ratos saíam agora à rua. Os corvos, que tinham ficado para trás, num ápice os caçaram, para uma satisfação efémera.
Chegou. O negrume não deu azo à alegria que alcançou. Tocou o chão despedindo-se já da vida medíocre.
No escuro, sentiu um cheiro intenso e a presença de outros corvos. Alimentavam-se em silêncio, resignados a uma condição. Não se deram ao trabalho de saudar o recém-chegado. Foram partindo. Apagaram-se na noite sem lua. Não ouviu o bater das asas, apenas garras riscando o chão.
Depois, sozinho, voou como um louco, vibrando sobre os arcos. A cadência das suas asas fazia eco nas perpétuas paredes.
— Chamarei todos lá fora para virem matar a fome!
Quatro da manhã, quando a luz alvejava as sombras, viu bem de perto o rio. Subindo a torre, toda a podridão ganhava invisibilidade.
Os corvos uniam-se formando uma mancha preta. Seguiam as delineações que o recém-chegado edificava no ar. Não o acompanhavam.
Comia o mais que podia quando um corvo se aproximou em pequenos saltos:
— Voa enquanto é tempo.
Um alvoroço fez-se sentir na ala aberta da torre. As pessoas, descalças e vestidas de cores cruas, entraram de rompante naquele compartimento. Os gritos foram tão invasores do silêncio que o primeiro instinto do corvo foi fugir. Com a barriga demasiado farta, desequilibrou-se e foi então abeirar-se numa janela peculiar em forma de cruz. Dentro daquelas paredes estava um homem. De pé, dirigia o olhar, para o adro. Esfregava a barba ruiva com as suas mãos pálidas. Tremiam. Colocou-as ao peito, sustendo a respiração.
As pessoas afastavam-se e davam passagem a uma mulher, de cabelos longos e pretos que avançava de cabeça erguida, apesar de consciente de seu fim. Subiu uns pequenos degraus de madeira, ao encontro do patíbulo. Ouviram-se as suas últimas palavras. Outra mulher aproximou-se e, prendendo nos lábios o choro, vendou-lhe os olhos com um lenço branco dobrado em quatro, deu dois passos para trás e inclinou a cabeça para a frente, para que os seus cabelos a vendassem também. A condenada colocou-se de joelhos, com a cabeça assente numa plataforma. O som de um corte afiado, direto e único rasgou o ar.
O homem agachou-se nesse instante, fez-se pequeno, escorregando pelas colunas até ao chão, abraçou os joelhos. Prisioneiro da torre e de si próprio, nada poderia fazer para evitar aquela desgraça.
O corvo depressa concluiu o porquê de tanta fartura. Bateu as asas em pavor e foi cair diante dos outros corvos, apagou-se.
Quando despertou, uma dor aguda lacerava-lhe o lado direito. As penas das asas tinham sido cortadas. Tentou voar, não conseguiu.
Percebia agora o aviso e o deslumbramento dos outros perante o seu voo. Tarde de mais. Teria sido melhor morrer do que viver preso à vertigem de uma vida farta.
Passou dias sem comer, lamentando a sua ambição. Arrancou ele próprio as restantes penas. Nu, restava-lhe a coroa negra na sua pequena cabeça. Era rei, era nada.
Aos poucos, arrastou-se até ao jardim. Bicava bagas entre os lírios. Rebentavam fragrâncias e luz na terra negra. As farpas de penas cresciam entre as formigas. Esperava eliminarem a sensação de incapacidade.
Ficava cada vez mais ágil e preciso nos movimentos das suas patas que granjeavam sola grossa.
Passados dois outonos, já se vestia de preto e os saltos eram acompanhados de flutuações que balançavam o seu corpo em voos curtos, sempre rentes ao chão.
Utilizando pequenos muros, aproximava-se da janela em forma de cruz, desafiando a gravidade. O homem esculpia palavras perpetuadas em sonetos que depois lia em voz alta. Quando dava pela presença do corvo, levantava-se e estendia-lhe pão através da pequena abertura.
Numa noite, viu surgir um pano, alongava-se em vários nós até o solo. Por ele descia o homem de barbas ruivas. No barco, escondido entre os arbustos da margem do rio, aguardavam-no outros dois. Os seus pés, quando assentaram nas folhas secas, provocaram um crepitar que fez despertar os guardas. O homem iria ser apanhado. Surgiu então uma ideia. O corvo, usando o que ouvira muitas vezes, disse, num crocito frio e duro:
— Viva ao rei!
Os guardas estremeceram. Em vez de avançarem, recuaram de encontro às paredes e hesitaram. Aquela voz rouca e sarcástica parecia levantada das trevas, vingando todas as mortes.
De repente, o homem agitou os braços desesperado. Tinha deixado cair algo importante na fuga. Queria saltar borda fora. Tentavam controlá-lo. Apontava para o jardim. Então o corvo percebeu a sua aflição.
Com patas curtas, tentava ser veloz, nos muros, nos degraus, nas pedras, na terra. Por mais rápido que tentasse e se movesse, o tempo era ladrão. Os guardas, com as suas lanternas, aproximavam-se, denunciando a morte certa. Então, pela primeira vez, desde aquele dia fatídico, abeirou-se do seu próprio precipício, abriu as asas e atirou-se.
Dois homens controlavam a pequena embarcação e o vento forte em seu favor. Iriam conseguir escapar. O fugitivo baixou os braços, escondeu a cabeça no carapuço preto e fechou os olhos abraçando o livro que trazia embrulhado à cintura. Chorava.
Os dois guardas olhavam a pequena embarcação, correndo de mãos às cabeças.
Num voo triunfal, o corvo aproxima-se, batendo as asas em euforia. Largou o que o homem perdera nas suas mãos. Este depressa saltou em exaltação. Beijou suavemente o lenço dobrado em quatro, esticou-o. Susteve-o na haste e elevou-o bem alto, formando uma bandeira branca. O tecido balançou ao sabor do vento e do mar.
O corvo descansou por um instante no topo do mastro. Pôde ver a árvore de onde partira. Lá permaneciam os mesmos pontos pretos.
O homem de barbas, dirigindo-se ao lenço esvoaçante ao vento, declarou:
— Cumprirei o que prometi, meu anjo. Juntos conheceremos os quatro cantos do mundo e tornarei a nossa história eterna.