A minha raiva irrompe por todas as células, elas gritam por liberdade; os outros deliberaram…
Ouço sons, a compreensão é idêntica ao uso de uma língua desconhecida.
— Ouviste o que te disse, João? — Olho-o, mas não lhe respondo. — Quero que a afastes de vez. Ela é uma forasteira, não tem qualquer ligação a nós, é ignorante e vai ficar assim.
— Acalma-te, Vasco!
— Não te metas Rui, isto não é contigo!
Nivelo a respiração e profiro o antagónico à minha verdade.
— Vou ligar-lhe e pedir que venha ter comigo, não pode ser por telefone, Vasco, terei os documentos prontos, ela assina-os, vendendo-me a parte dela na casa. Termina-se tudo.
Saio da sala para o corredor e alcanço a porta. Percorro a rua, tal marioneta num palco: manipulado, sorrindo para quem comigo se cruza.
Atravesso a minha casa. No quintal sento-me debaixo da macieira junto ao muro. Encostado ao seu tronco, e porque consigo cheirar tudo, foco-me no que está mais perto: a fruta, as rosas e a terra. Os meus dedos sentem a secura primeiro, a seguir a humidade, até tocar nas raízes e o frenético bater do coração se reduzir.
A conversa com o Vasco deixou-me drenado. Nos últimos oito meses tem sido assim, é com se ele estivesse obcecado com a ideia de ser o responsável. Um líder deve ouvir os membros da sua comunidade, mas ele anda mouco. Outros impõem-me uma sentença, ele aceita e concorda. O meu irmão e amigo, hoje, ele esqueceu-se disso.
Ouço o Rui a aproximar-se da minha casa.
— Então, meu! Estás bem?
—Achas?!
— Desculpa, meu. Quando te pedi para voltares não era para lixar a tua vida. Sei o quanto a Catarina é importante para ti, o Vasco não tem o direito de te exigir que largues a mulher que amas. Gaita! Não te devia ter pedido para voltares.
— Eu voltei porque quis. Se for honesto, aqui sinto-me bem, tranquilo, feliz quando ela está comigo.
— Tu és um tipo que sempre lutou para conseguir o que quer, leal, pronto para ajudares os teus amigos ou um estranho. Eu sei que a amas, então por que fizeste o teu irmão pensar que vais deixá-la?
— Eu disse ao meu irmão que vou pedir à Catarina para vir passar uns dias comigo. Temos mesmo de falar.
— Sacana, tu estás a planear alguma.
— Nada de planeamento. Precisamos de estar juntos, falar, e tenho de lhe contar a verdade.
— Achas que ela vai aceitar? Sabes que gosto dela, mas a nossa herança genética vai testar tudo. Confias assim tanto no amor dela?
— Sim, confio. Anda, ofereço-te um café.
— Preferia uma cervejinha!
— Nada de álcool, precisamos estar bem para a corrida.
— Sim, sim!
…
Acabo por apanhar um pequeno coelho, só para o deixar ir, a sua morte é desnecessária, dela não depende a minha sobrevivência, para quê sacrificá-lo? Fico aqui, onde tudo é claro, descomplicado, sem dúvidas ou morais. A natureza tem um lugar e uma razão para tudo. Deito-me sobre o musgo húmido, refresca-me; relaxo, o outro mundo desvanece e a paz instala-se.
Ouço uivos, tenho de ir, esfrego-me com satisfação no tronco e corro de volta.
…
Sentado numa pedra, alta e lisa, observo a lua e acalmo o ritmo do meu corpo após a corrida.
Ela estará cá daqui a dois dias. Penso na minha decisão de lhe contar quem sou. A sua personalidade e a forma de percepcionar o mundo, como se fosse um tabuleiro de xadrez, faz-me questionar se vai acreditar em mim.
O meu tio costumava dizer que o curso da vida tem vontade própria. Nunca odiei tanto essa frase.
Sou o que sou. Tudo fiz para viver sem ser dominado, forçado a determinadas decisões, sem resultado. Cedo decidi não me ligar a uma mulher, achava que não encontraria ninguém capaz de me aceitar e amar na totalidade. Irónico, sendo homem, ter este tipo de ideias. Um dia tropecei na Catarina, no mesmo minuto a minha existência implodiu para se reconstruir, diferente, mas mais forte. Patético eu sei, todavia é isso que sinto. Quero-a para minha parceira, não serão outros a decidir, seremos nós.
…
A passo de marcha, atravesso a estação até entrar no comboio.
Encontro o meu lugar e encosto a cabeça. A correria da paisagem parece acompanhar o caos do meu pensamento.
Os outros acharam que estávamos a ir muito rápido, mesmo com “boas intenções” minavam, afastamo-nos desses, até do meu pai; estava tão certa. Após a morte do tio, ele teve de regressar à terra. Foi ficando; entre nós instalou-se um distanciamento, desconforto e silêncio. Precisamos falar, decidir, não podemos continuar numa relação sem efectivamente estar. Serei idiota por ter esperança? Talvez.
Com o baloiçar surgem lembranças de felicidade, compartilhadas com o João, acalmam-me e adormeço.
Quando abro os olhos a viagem está a terminar. As portas do comboio abrem-se e sou abraçada pela realidade.
…
Uns quarenta minutos mais tarde, encontro-me à porta de uma casa, em tempos minha.
Experimento o portão, destrancado. “Não estamos mesmo na cidade!”, no pequeno alpendre empurro a porta encostada, entro no hall e estanco. Ainda ontem aqui estive…
Coloco o casaco e a mala no pequeno canapé encostado à parede e entro na sala à esquerda, vazia. Sigo para a cozinha. Apesar do cheiro de café acabado de fazer, não se vê ninguém. A luz da lua, cheia e brilhante, é suficiente para ver a sua forma.
Tem o olhar fixo no céu, tão quieto, estranho e familiar.
Caminho até ele. A sua atenção está agora em mim, aqueles olhos castanhos, tom dourado, cercam-me de cuidado e carinho.
— Catarina, era suposto chegares amanhã! Mas obrigado por teres vindo, não tinha a certeza se virias.
— Tens razão, temos de falar, decidir o que queremos. Falaste na casa, queres ficar com ela?
— Porquê essa atitude?
— Qual atitude? Agora está claro que queres terminar tudo, não teres qualquer ligação a mim. Vamos despachar a papelada, tenho de voltar para Lisboa.
Sinto a mão dele no meu antebraço.
— Estás a precipitar-te e a tirar conclusões erradas. Passámos de viver juntos a estarmos em geografias diferentes. Oito meses não são oito dias, eu estou inseguro em relação a ti. Sei lá se ainda me amas, se queres continuar a partilhar a tua vida comigo.
— Foste tu que te afastaste.
— Não, fomos os dois. E de nada adianta estarmos a discutir o que fizemos ou deveríamos ter feito. Temos de falar com calma sobre o que queremos, se os nossos sentimentos se mantêm… e eu preciso falar-te sobre a minha família.
— É assim tão grave? Sobre a tua família, quero dizer. O melhor é falarmos já.
— Já é muito tarde, precisas descansar, amanhã teremos tempo para falar sobre tudo.
— Prefiro falar — sou interrompida pelos lábios dele a tocarem os meus —, agora.
— Catarina, o cansaço não vai ajudar à nossa conversa, por favor.
Antes que possa responder, ele diz-me que vou ficar no quarto principal. Tento retorquir, mas ele volta a antecipar-se.
— Eu nunca mais o usei, mas está limpo e com lençóis lavados.
Decido não discutir. Volto a entrar em casa. No primeiro andar dirijo-me ao quarto e o meu coração afunda-se. Ainda ontem aqui estive…
Respiro fundo e resolvo não pensar nos porquês, só me vão magoar. Rapidamente retiro da mala o que preciso, sigo a minha rotina noturna e deito-me.
Apesar do cansaço é–me difícil adormecer. Rever o João, sentir o seu carinho, mas também a sua insegurança exponenciou a minha angústia. E o que se passará com a família dele? O irmão nunca gostou muito de mim, sempre senti animosidade daquela parte. Parecia tão preocupado, quase com receio de referir aquele tema. O corpo está desgastado e dá sinais de querer restaurar-se.
Devo estar a dormitar, ouço o que parece um cão a uivar. O som causa-me arrepios, levanto-me e vou até à janela. Junto à macieira e às roseiras parece haver movimento. Apesar da iluminação estelar, nada fica perceptível.
Novo uivo, este ainda me soa mais aflitivo, pode ser um cão que ficou preso e está magoado. Visto um casaco de malha e vou até ao quintal. Já perto das roseiras, vejo-as a abanarem e surgem uns olhos enormes, dourados, a olhar para mim. É um animal, aparenta ser grande, talvez um serra-da-estrela. Fico quieta, ele move-se na minha direcção.
Percebo que me enganei, não é um cão, mas sim um lobo. Uma pata, depois outra e ele está à minha frente, uns olhos tom dourado. Este olhar cerca-me de cuidado e carinho. Eu conheço estes olhos…
Nota: por desejo da autora, este conto não segue o Acordo Ortográfico de 1990