Autor(a):

Isaura Bento Correia

Bibliotecas – Um meio de democratização do acesso aos livros e à cultura

Na minha casa não havia livros, havia discos e um gira-discos. Com o meu pai aprendi a gostar de música rock e de dançar. Mas, e a leitura e a escrita? De onde veio a minha paixão? Os meus pais não me leram livros de histórias ao deitar. Na infância não me ofereceram livros.

Recordo-me que, antes de entrar para a escola, devia ter uns cinco anos, inventava histórias, criava personagens e imaginava-me a fazer teatro.

Com a ida para a escola, tive contacto com a leitura e com a escrita. Quando tinha sete ou oito anos peguei num bloco e escrevi a minha primeira história ilustrada: “A neta que passeava com o avô no jardim”. Desenhei um jardim e um banco. Impressionante como esta memória permanece tão presente e me desafia a escrever.

Outro marco importante na minha vida foi a carrinha da biblioteca itinerante, que ia à aldeia onde vivi até aos meus onze anos. Era uma alegria quando chegava a carrinha. Um momento mágico, entrar, pegar nos livros e requisitar as coleções d’Os Cinco, d`Os Sete e da Anita. Quando lia, imaginava que era uma das personagens e vivia grandes aventuras.

Este serviço de Bibliotecas Itinerantes foi criado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1958. Tinha como objetivos promover e desenvolver o gosto pela leitura e aumentar o nível cultural dos cidadãos. Destinava-se principalmente a quem tinha menor acesso à educação e habitava em regiões desfavorecidas. Para mim, a carrinha-biblioteca foi especial. Deu-me a conhecer um mundo que só se pode encontrar nos livros. O meu primeiro amor.

Outra biblioteca que me marcou foi a Biblioteca Virgílio Ferreira, em Gouveia. Como não tinha possibilidade de comprar livros, a utilização deste espaço e a requisição dos livros foram uma forma de sobrevivência e de ultrapassar a vida pacata num meio do interior. Adorava ler e folhear os livros. Ao entrar na biblioteca sentia-me em casa. Ainda hoje, sinto que estou num lugar sagrado, num mundo de vidas reais e imaginadas. 

Nas leituras que influenciaram esta fase estão também os livros de romances cor-de-rosa das minhas tias. Tantos sonhos coloridos e paixões vividas, amores platónicos. À noite tinha de me deitar cedo. Lembro-me de fingir que ia dormir e estar a ler até tarde.

Passei tardes lendo livros, esquecendo o local onde estava e fazendo viagens por países desconhecidos — dialogando com personagens interessantes sobre a vida, sobre os valores, sobre o meu lugar no mundo.

Houve uma fase em que queria ser cientista. Os livros do Carl Sagan despertavam a minha veia de investigadora do espaço e do que está para além da Terra. Imaginava ser uma astrónoma.

Os livros policiais eram para mim outra área de interesse: Agatha Christie e o Poirot. Os mistérios por resolver, as pistas subtis, faziam-me ser uma grande detetive.

A escrita veio por acréscimo. Escrevia histórias, principalmente poesias. O que me inspirava? As vivências de adolescente, os amores e as angústias. A escrita era uma catarse. Ao escrever havia uma libertação das amarras dos pensamentos e emoções.

A entrada para a universidade, foi outra mudança na minha vida. A leitura tornou-se técnica e a escrita mecânica. A fonte secou. Ainda não consigo entender o que aconteceu. Houve um adormecimento, a negação de uma parte de mim.

Em agosto, fui de férias, à minha terra natal. Como sempre, fui à biblioteca, onde cresci e viajei, sem sair da cidade. Aconteceu algo inusitado. Ao falar com a funcionária, para requisitar um livro, ela foi ao computador e verificou que eu ainda estava inscrita. Disse-me que fui das primeiras a inscrever-me, porque a Biblioteca tinha aberto nessa altura. Voltei a ser adolescente, a sentir aquela chama dentro de mim, a vontade de ler e escrever. Percebi que os livros sempre me acompanharam e ajudaram: a resistir, a ultrapassar barreiras, a sonhar e a projetar-me numa vida diferente.

A questão permanece. O que me levou à paixão da leitura e da escrita? Ao divagar sobre a minha ancestralidade, lembrei-me de que a minha avó gostava de contar histórias e dizer provérbios. A minha mãe, que tem apenas a quarta classe, gosta de fazer versos. Só lhe descobri esta faceta quando veio à Madeira e me escreveu uns versos. Na sua juventude também fez teatro. 

As peças do puzzle foram-se juntando. Apesar de não terem a oportunidade de estudar e desenvolver os seus dons literários, ambas me transmitiram essa paixão. A diferença é que eu tive os meios para estudar. Apesar de, na altura, não ter posses para comprar livros, as bibliotecas deram-me a oportunidade de contactar com eles, de percorrer o caminho acompanhada pelas palavras. Para mim, ficou claro que as bibliotecas democratizam o acesso à leitura e à escrita, para todos aqueles que de outra forma não teriam acesso à cultura e aos livros.

Eu sou Eu, em grande parte, pelos livros que li. Os meus tijolos são feitos de livros e o meu ADN de palavras.

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AUTOR(A)
Isaura Bento Correia

Isaura Bento Correia nasceu em Gouveia, a 27 de maio de 1972. Licenciou-se em Psicologia na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Posteriormente, realizou uma Pós-Graduação em Psicologia Escolar, na Universidade do Minho, em 2001.

Exerce funções de psicóloga no Centro de Reabilitação Psicopedagógica da Sagrada Família das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, desde 1996, na Ilha da Madeira. Pertence à equipa da pastoral da Saúde e é animadora do Grupo de Leigos Hospitaleiros. É responsável pelo Departamento de Formação do Centro e desenvolve formação nas áreas da psicologia e espiritualidade.

Tem escrito artigos no âmbito da Espiritualidade e Pastoral, no Boletim da Pastoral Boa Nova, pertencendo à equipa editorial.

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