Suponho que, tal como eu, a maior parte de vós tenha uma relação complexa com o tempo, este conceito ainda não absolutamente definido pela ciência, mas imiscuído na vida de todos os humanos de forma fatal, conscientes que somos da nossa finitude. É esta noção, sempre em pano de fundo, de dias contados, que volta e meia emerge por entre a névoa das rotinas e suscita a pergunta universal e intemporal: o que ando eu a fazer com o meu tempo de vida?
Não é novo afirmar que vivemos em contrarrelógio: os dias são preenchidos por mil tarefas e responsabilidades pessoais e profissionais registadas a cores distintas em agendas que nos tiranizam; somos pressionados e pressionamo-nos a sermos produtivos, a definir objectivos injustos, a abraçar a multitarefa, a agarrar oportunidades ou a criá-las, a fazermos só mais aquele esforço. Tudo isto para — o diabo seja cego, surdo e mudo! — não nos sentirmos culpados, não sermos confundidos com quem não concretiza, não alcança, quem preguiçou e estagnou.
Fizemo-nos adoradores do deus Chronos, o deus do tempo invencível, indomável, que nos destrói e devora. Tentamos domesticá-lo, administrá-lo — quantas formações já fizeram sobre gestão de tempo? — e, no entanto, ao fim do dia, ao fim dos anos, acumula-se a sensação de estafeta infinita a contornar e a saltar obstáculos, a sensação de caos e de exaustão.
O biblioterapeuta Marc-Alain Ouaknin e o neurocientista Lamberto Maffei, nas suas obras “Bibliothérapie: lire c’est guérir” e “O elogio da lentidão” respectivamente, ofereceram-me uma palavra para nomear esta sensação de “caos dentro da rotina”: cronopatologia, literalmente “doença do tempo”. Enquanto Maffei sublinha a ironia que é o ser humano almejar imitar a produtividade e a velocidade das máquinas que ele próprio inventou (fruto de um cérebro lento nos seus processos de pensamento profundo e crítico essenciais à criatividade — o que é um paradoxo), Ouaknin defende que “a ausência de passado e a perda de capacidade de se projectar no futuro”, isto é, o manter-se atolado no dia-a-dia rotineiro e caótico são, para além de doenças do tempo, o tempo da doença. Também o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, no seu livro “A Sociedade do Cansaço”, constata que “a sociedade de produção e de actividade produz um cansaço e esgotamento excessivos (…) um cansaço individual, um cansaço que separa e isola (…) que provoca no indivíduo a incapacidade de ver e o mutismo”, que “dá lugar a uma mera preocupação pela sobrevivência” e “leva ao enfarte da alma”. Surgem as Depressões, os Transtornos por Défice de Atenção e Hiperactividade ou a Síndroma de Burnout, tudo doenças do tempo, tudo cronopatologias às quais, segundo Ouaknin, devem corresponder cronoterapias.
A Biblioterapia é claramente uma das terapias disponíveis. Primeiro porque permite temperar a adoração do deus Chronos com a veneração do deus Kairós, o deus do tempo de qualidade, oportuno, vivido com significado, propósito e prazer. É isso que se espera da interacção com uma história — que seja prazerosa, que envolva e enleve o leitor, o ouvinte ou o espectador. Para que tal aconteça, antes de mais é preciso parar tudo: deitados, sentados, em pé ou mesmo em movimento (já vi pessoas a ler enquanto caminham), tudo o resto — as tarefas, as preocupações, os prazos — fica posto de parte quando entramos dentro de uma história.
Então, abre-se uma clareira, um intervalo onde se manifesta o poder da narrativa que, para além de suscitar e apaziguar emoções, nos leva a resgatar memórias, a fazer associações diversas com a nossa experiência de vida, a extrapolar — logo a imaginar, a levantar novas hipóteses, a descortinar outras perspectivas. E ainda nos oferece uma temporalidade organizada, um fio condutor com princípio, meio e fim, que nos ajuda a ligar passado, presente e futuro, capacidade que perdemos na bruma do caos rotineiro. Segundo Ouaknin a narrativa torna “possível a reinserção numa temporalidade harmoniosa onde o futuro vai buscar forças ao passado e a memória dá asas à esperança.” Foi o que sentiu a jornalista Laure Adler após a morte de um filho, quando encontrou na leitura uma tábua de salvação: “Sei que o livro, ao trocar o meu tempo pelo seu, o caos da minha vida pela ordem da narração, me ajudou a recuperar o fôlego e a avistar um futuro.”
Fica a sugestão: quando se sentirem engolidos(as) pela exaustão da rotina caótica, parem e entrem dentro de uma história. Parem e leiam. Transformem o cansaço violento num cansaço amigo, num “cansaço clarividente”, redentor, que permite o acesso a formas morosas de estar e ao rejuvenescimento. É neste tempo de paz que se combate o tempo da doença e a doença do tempo. Por isso a Biblioterapia é cronoterapia.
[1] “Bibliothérapie: Lire, C’est Guérir, de Marc-Alain Ouaknin, Points, 2015
[2] “Elogio da Lentidão”, de Lamberto Maffei, Edições 70, 2018
[3] “A Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, Relógio d’ Água, 2014
[4] “Bibliothérapie: Lire, C’est Guérir, de Marc-Alain Ouaknin, Points, 2015
[5] Citada por Irene Vallejo, em “Manifesto Pela Leitura”, Bertrand Editores, 2021
[6] “A Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, Relógio d’ Água, 2014