Intrigava a mim e a metade das pessoas que sabiam da sua existência. Ângela era invisível na cidade. A sua casa térrea rodeada de um pequeno jardim parecia cuidada por um anjo. Emanava graça e harmonia.
De origem Cuanhama, num ano de seca severa, veio até Moçâmedes com alguns parentes, à procura de melhor local para cultivar. O grupo construiu as suas cubatas entre o mar e o deserto no extremo sul da cidade.
Não se soube como Ângela apareceu vestida com farda e avental do Hotel Moçâmedes. Certo foi que depressa se tornou imprescindível numa adaptação rápida a todo o serviço desde a lavandaria até à cozinha.
Surpreendeu todos quando anunciou, perentoriamente, que sairia no fim do mês. Como ninguém suspeitava que a prestativa Ângela podia ter vida própria, todos lamentavam a sua futura falta. Só o Sr. Sacramento se mostrava indiferente. Havia meses que deixara de jogar às damas depois das cinco horas, quando os funcionários dos serviços se juntavam a tomar umas cervejas e a conviver antes do jantar. Quando chegava já os comensais tinham terminado a sopa e esperavam o prato de peixe. Todo ele pergaminhos e desculpas pelo atraso, após a refeição recolhia ao seu quarto. Hóspede desde há um ano, chegara num Paquete para ocupar a chefia de uma agência. Instalara-se no Hotel Moçâmedes. Taciturno, não se conhecia muito da sua vida, sabia-se que era de Setúbal e que era viúvo. Nos mentideros diziam que viera em busca de paz depois de terem morrido a sua mulher e a sua filha, num acidente no carro que ele conduzia.
Ângela gostou da casa com vista para a Baía, nunca mais de lá saiu: o senhor Sacramento que era agora o seu companheiro, o jardim para cultivar e a visão dos navios que chegavam ou zarpavam preenchiam os seus sonhos. À tarde gostava de se sentar na soleira da porta a fumar o seu cigarro invertido, com a ponta acesa dentro da boca que a espaços se abria para sair o fumo em nuvem branca ou azulada. O Sr. Sacramento fazia as compras, dedicava o tempo livre à sua coleção de selos e às brincadeiras com os dois filhos que entretanto nasceram.
Em Janeiro de 1976, subiram as escadas do Silver Sky, o cargueiro que por acidente se tornou o salvo-conduto de parte da população a fugir de uma guerra irracional, sem estratégia nem comando. Com eles embarcavam mais seiscentas pessoas assustadas e sem futuro. Ângela, tomou a direção da cozinha, fazendo o milagre da multiplicação de alimentos. Colaborou com o enfermeiro a tratar dos que precisavam, da menina que partiu uma perna ao cair, da parturiente que ali deu à luz por entre as pessoas amontoadas e os panos que lhes serviam de cobertor. Chegados a Windhoek, aos nascidos em Angola foi determinado serem escoltados até à fronteira do país de onde tinham fugido. Os que tinham ascendência portuguesa seguiriam para Lisboa num voo militar. Ângela chegou ao aeroporto de Figo Maduro confiante. Ela vencera a regra cega, negara a separação dos filhos, estavam a salvo.
Foram para Setúbal viver na casa confortável que o Sr. Sacramento mantinha na Avenida Luísa Todi. Vi-a muitas vezes vestida de samacaca** a fumar o seu cigarro, invertido na boca, sentada na varanda de onde seguia o movimento dos navios no Sado, entrando para reparação no estaleiro e saindo pintados de fresco, até o silvo anunciar o rumo ao Atlântico.
Sonhava com um Blue Sky, desta vez um cargueiro de esperança, que a levasse de volta à sua terra.
* Povo do sul de Angola e da Namíbia
**Samacaca tecido angolano que serve para vestir