Cai neve em Bakhmut

Cai neve em Bakhmut

os pés queimam e ela caminha

sem saber para onde vai

indiferente às bolas de fogo

que silvam sobre a sua cabeça.

Estrondeiam escombros

de onde surgem espavoridos

esqueletos de velhos

como ratos assombrados

 

cai neve em Bakhmut

os pés queimam e ela caminha.

Um braço hirto de cadáver sem nome

sobressai no manto branco

como se fora um sinal da estrada

que antes era ali, mas já não é.

Perdeu o rumo, tal como ela

 

eu volto, mãe. Não te preocupes,

volto logo!

 

cai neve em Bakhmut

os pés queimam, ela caminha

e sabe. Sabe o que não quer saber:

o filho, corpo incógnito, jazendo

na escuridão da vala comum

onde se emudeceram todos os gritos

de dor, desespero, raiva ou glória

 

cai neve em Bakhmut

os pés queimam e ela caminha.

Leva os olhos turvos de espanto

e, nos braços, o neto, apertado ao peito.

Procura aquecer-lhe a esperança.

Olha-o, sorri e só então vê

que metade do seu rosto pinga,

massa informe, sangrenta

 

cai neve em Bakhmut

os pés queimam, ela não sente,

não caminha. Soçobra,

mácula incrédula a perturbar

a gélida lonjura do chão

 

quem lhe roubou a paz?

 

cai neve em Bakhmut

só o uivo do vento se faz ouvir. 

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AUTOR(A)
Carmo Marques

Carmo Marques nasceu na Ilha da Madeira, onde reside. Formada em Filologia germânica, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, dedicou a sua vida à absorvente tarefa de ensinar, deixando apenas uma parca fatia do seu tempo para a escrita. Foi coautora da versão portuguesa dos contos do escritor inglês Romesh Gunesekera, integrados na edição bilingue de The Spice Collector/O Colecionador de Especiarias, Ed. Funchal 500 anos, 2008. Ao longo dos anos, participou em várias revistas e coletâneas de poesia. Em 2014, na sequência de uma tese de mestrado na área da literatura medieval, publicou No Reino Aventuroso de Artur – Um olhar sobre Mulher medieval a partir de uma leitura de “A Demanda do Santo Graal”. Mantém, desde 2017, uma crónica no JM (Jornal da Madeira). Em 2021, como Carminho Barreto, publicou Da terra e da vida, uma coleção de poemas. No mesmo ano, o seu destino cruzou-se com “O prazer da escrita”, o que lhe permitiu integrar a coletânea Não Vão os Lobos Voltar, com o conto Não Há Quem Não Mereça Uma Flor, bem como participar nas várias edições da Revista Palavrar. Foi vencedora do Prémio literário João Augusto d’Ornelas -2021, com o conto Regresso a Casa. Em janeiro de 2022, publicou No Tempo das Cerejas, uma autobiografia ficcionada e em outubro, o livro de contos Quantas Vidas Tem um Gato. Ainda em 2022, foi-lhe atribuído o primeiro prémio no Concurso literário Francisco Álvares de Nóbrega, com o conto A Sombra do Poeta.

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