Autor(a):

João Ventura
João Ventura

Caminhos cruzados: Robert Walser e W. G. Sebald

Pergunta W. G. Sebald, no ensaio “Uma tentativa de restituição” (in Campo Santo), “quais são as relações invisíveis que determinam a nossa vida, como se estendessem os fios” entre acontecimentos distantes ditados por uma estranha lei que nos escapa. O que liga a prosa anímica do caminhante Sebald ao rasto já há muito extinto do passeante Robert Walser, mas que continua visível no papel? Onde se cruzam as suas biografias?

Talvez no facto de Sebald ter vivido toda a sua infância com o avô materno, que não só tinha o hábito das grandes caminhadas como Walser, como, ainda, era muito parecido fisicamente com ele. Se não bastasse essa coincidência, também ele morreu na neve, quando passeava, solitário, numa paisagem semelhante àquela em que Walser sucumbiu fulminado e que distava apenas cem quilómetros de Herisau e, ao que parece, no dia anterior ao do último aniversário do escritor suíço.

Talvez, depois, por ambos remeterem para uma espécie de “poética da extinção”, segundo a formulação de Enrique Vila-Matas.

Em Walser, através de elegantes fantasias poéticas que vai traçando, tenuemente, a lápis no papel para melhor desaparecer, uma frase fazendo sempre esquecer a anterior: “Declaro que uma bonita manhã, já não sei exatamente a que horas, ao sentir vontade de dar um passeio, pus o chapéu na cabeça, abandonei o quarto dos escritos ou dos espíritos, e desci a escada para sair em bom passo para a rua” (O passeio e outras histórias).

Em Sebald, sedimentada em camadas de esquecimento, nos escombros que ele vai escavando nos seus passeios solitários por passagens obscuras que descreve depois com uma prosa pausada e cadenciada para melhor dar conta do desvanecimento da história: “Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos e as moreias”.

Talvez, ainda, porque, um e outro, entreviam o mundo envolto numa estranha quietude. Walser caminhando solitário sob a luz cristalina da manhã em busca do espírito da montanha. Sebald procurando resgatar uma moral da natureza.

Um e outro à procura de uma cintilação qualquer no tecido puído do tempo.

Seriam estas as causalidades que levaram Sebald, em 1997, na primeira sessão do ciclo de lições que proferiu na Universidade de Zurique, a evocar o passeio de Carl Seeling com Walser, nos arredores do manicómio de Herisau, no Verão de 1943 – passeio que, anos depois, relataria na biografia que lhe dedicou —, precisamente no mesmo dia do bombardeamento de Hamburgo, descrito em História natural da destruição? “Não são casualidades” – diria Sebald se lhe perguntassem sobre o que o liga a Walser —, “trata-se apenas de existir algures uma relação que de quando em quando cintila por entre um tecido puído.”

Como também não foi casualidade eu ter acabado de ler os ensaios de Campo Santo e ter ficado admirado por não encontrar qualquer referência a Walser, como se a sua biografia fosse tão delicada e a sua prosa tão leve que tornasse quase impossível seguir-lhe o rasto, até mesmo Sebald tão habituado em fazer incursões através de territórios obscuros, cujos sedimentos vasculha nas camadas de esquecimento para onde os seus passos de caminhante solitário e de narrador interpelante o conduzem sempre que se dispõe a caminhar entre ruínas. 

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João Ventura
João Ventura

Fui durante largos anos professor de língua e literatura portuguesas, e durante três anos, de cultura portuguesa na Sorbonne, em Paris. Também lecionei na Universidade do Algarve cadeiras de gestão cultural e exerci o cargo de Diretor Regional de Cultura do Algarve. Fui bibliotecário. E fui diretor do TEMPO.

Como professor, bibliotecário ou gestor e programador cultural, a crónica da minha trajetória profissional tem duas marcas que a definem: a opção pelo sector público e pela criatividade. Por isso, a minha formação e aprendizagem nunca a dou por concluída, seja regressando uma e outra vez aos bancos da universidade seja através da leitura e das viagens que são outras duas marcas da crónica da minha aventura pessoal.

Gosto de ler, escrever e viajar. E estas três atividades furtivas ligam-se entre si. Umas vezes, leio e viajo para escrever. Outras vezes, leio e escrevo para viajar em seguida aos lugares que antecipei em crónicas de viagem inventadas. Destas deambulações, umas vezes literárias, outras geográficas, fui deixando rastos no papel. Na revista Atlântica, cujo projeto editorial criei e da qual fui diretor, e nos blogues O que cai dos dias, O leitor sem qualidades e, agora no blogue nómada Fora daqui.

Gosto de me ver como um criador de projetos culturais, alguém que faz acontecer ideias seja na vida profissional seja na vida privada. Atualmente, trabalho na Biblioteca Municipal de Portimão, desenvolvendo ideias e projetos de divulgação do livro e da leitura. E tenho em mãos, a escrita de um livro de crónicas de viagens literárias. Também gosto de cozinhar.

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