CARAMINHAU e TAU

CARAMINHAU e TAU

Chamam-me Napoleão Maximiliano. Se calhar acham que é um nome pomposo para um gato. Concordo. Foi ideia da Laurinha e, como ela me trata tão bem, nem me importo. No entanto, o meu nome verdadeiro é Caraminhau.

Tenho vida de lorde, sem dúvida. De vez em quando lá dou umas voltas pela casa, ou salto para cima dos móveis, mas acabo por passar a maior parte do dia esticado, na preguiça, a dormir em cima de uma das almofadas com as minhas iniciais bordadas — sim, isso mesmo, ouviram bem —, ou a olhar pela janela. Só que nem sempre foi assim…

  Eu era um desses gatos vadios. Vivia num monte de carros abandonados, com pneus por todo o lado. As pessoas chamam-lhe sucata. Fiz lá muitos amigos. Vivemos muitas aventuras, até que vieram uns homens… falaram, falaram e, passados uns dias, os carros desapareceram. Começaram logo a escavar a terra. Como éramos conhecidos no bairro, fomos levados (quase todos, pois alguns preferiram fugir para outro lado) para abrigos de animais, à espera que nos adotassem. Tive a sorte de vir parar a esta casa.

            Desenganem-se se pensam que não estou feliz aqui, mas, se querem saber, eu também era feliz no meu monte de sucata. Além dos carros, havia por lá muitas coisas que as pessoas deitavam fora, entre as quais um sofá e um piano partido. Era bem fixe!

            Um dia, no meio da nossa sucata apareceu um caixote de madeira cheio de bolor. Apesar de não ser grande e aparentar ser leve, nenhum de nós o conseguia mudar de sítio — parecia colado ao chão. Por baixo dele começaram a entrar e a sair ratos. Fiquei com curiosidade: de onde vinham; para onde iriam? Eram tão rápidos que era impossível pôr-lhes a pata em cima. Como é que um rato, mais pequeno do que eu, podia entrar e sair assim do caixote, e eu nem era capaz de levantá-lo? Qual seria o segredo? Resolvi esconder-me e observar. Cada vez que um rato entrava, gemia: “Chio, chio” e desaparecia. Eureka! Seria isso? Um código? Esperei até estar sozinho e tentei: “Chio, chio”. Nada aconteceu. Meio chateado, saiu- me: “Miau, miau”. E não é que o caixote se levantou e eu caí num buraco?

            Quando abri os olhos, estava tudo escuro, só que, com a minha visão noturna, consegui perceber que estava numa espécie de caverna. Ouvi: “Bip, Bip! Claque, clique, cloque, katchapum!” Estranho! Reconhecia o cheiro a metal, porém aqueles barulhos… De repente, acendeu-se uma luz. À minha volta juntaram-se muitos robôs com cabeças a imitar ratazanas. Nunca vira nada assim! Apontavam para mim e diziam: “Bintivin, cintinvim, zintinvim”. Respondi: “Remiau, reminhau, renhau, nhau”.

Não nos entendemos. Até ali não estava preocupado, só que um dos robôs pôs-me uma trela à volta do pescoço e arrastou-me. Então, preparei-me para o pior. Não fiz nenhum esforço para me soltar, pois sabia que não iria conseguir: eles eram fortes. Levaram-me para uma sala onde um robô, que devia ser o chefe de todos — era tão alto que os outros só lhe chegavam à cintura — repetiu: “Bintivin, cintinvim, zintinvim”. Outra vez! E ainda por cima o som agora era bem mais forte! Que quereria dizer aquilo? O que quer que fosse era irritante! Puseram-me numa jaula e trouxeram-me comida. Fiquei desconfiado e nem lhe toquei, ainda mais que me cheirava a nuvens podres. Estive assim uns dias, não sei quantos. Já não podia com o cheiro daquela papa ou sei lá o que era que continuavam a trazer-me. Nada mais acontecia. Estava a ficar fraco. Quase tentado a comer, senti puxarem-me pela cauda. Virei-me e vi um ratinho, mais pequeno que os que via passar constantemente de um lado para o outro. Olhou para mim encolhido e disse:

  • Não comas isso… Vou ajudar-te a sair daqui.

Francamente, noutra altura, o ratinho teria sido um bom petisco. Mas não tinha forças para nada. Um rato a querer ajudar-me? Hum! Fiquei desconfiado.

De repente, o ratinho escondeu-se atrás de mim, pois um dos robôs apareceu com mais comida. Quando ele se foi embora, explicou:

— Querem fazer experiências contigo. Assim que comeres, levam-te para outra sala.

Quando ouvi aquilo, fiquei tão zangado que até ganhei forças e disse:

— Não vão conseguir! Quem pensam eles que são? Não tenho medo dos ratos normais, quanto mais deles, feitos de lata! Venham cá que eu lhes digo!

— Não fales assim! Olha que eles têm tudo controlado. Se puseres uma pata de fora, ou se lhes tocares, apanhas um choque — retorquiu o ratinho.

— Ai é? E como é que eu vou ter a certeza de que não foram eles que te mandaram aqui? — perguntei eu, mostrando-lhe os dentes.

— Estou a dizer a verdade! — continuou ele, a tremer. ­— Se fores para a outra sala, eu posso ajudar-te a fugir. Amanhã trago-te alguma coisa para matares a fome e levo isto daqui para fora. Assim, vão pensar que comeste tudo.

            — Por que estás a fazer isto por mim? — perguntei-lhe, desconfiado.

            — Não gosto destes robôs — respondeu ele, com lágrimas nos olhos. — Apanharam os meus amigos e estão a fazer experiências. Obrigam-nos a trazer outros. Ameaçam matar os que ficam, se não obedecerem. Não os vês a entrar e a sair? Eu consigo andar por aqui sem ser visto, porque sou mais pequeno. Quando chegaste, percebi que só tu nos poderias ajudar. Até amanhã, descansa.

 Queria perguntar-lhe como se chamava, mas desaparecera. Só eu os poderia ajudar? Ele dissera isso, sem dúvida. Senti-me importante. Adormeci mais tranquilo.

No dia seguinte, logo cedo, já o ratinho corria sem ser notado, levando para fora da jaula toda a comida que ali estava amontoada. Nem sei como, trouxera-me uns bons pedaços de peixe, que comi num piscar de olhos. Disse-me que tínhamos de libertar os amigos. Não estava a ver de que maneira. Franzi a testa, pensando que se calhar iria cair nalguma ratoeira. Ele percebeu. O que disse depois fez-me sentir que estava a ser injusto:

­— Não acreditas em mim? Afinal também já me podias ter apanhado. Eu também estou a confiar em ti. Não vês que precisamos um do outro? Tenho um plano.

Então, explicou-me que tinha passado dias a observar os robôs e que sabia onde desligar os comandos deles e todos os cabos elétricos das gaiolas. Só não conseguiria desativar a sala do robô chefe, mas essa era mais longe e não haveria problema. Iríamos ficar às escuras. Ele conhecia o caminho e sabia que para mim isso não fazia diferença. Precisava da minha ajuda para distrair os robôs. Depois, bastaria esperar por ele. Ora aí estava um plano com pinta! O ratinho era esperto! E eu iria enfrentar os robôs: fixe!

Quando um dos robôs passou perto da minha jaula, enchi o peito, para lhe mostrar que tinha comido. Começou com aquela cantilena “Bintivin, cintinvim, zintinvim.” Daí a pouco apareceram mais dois, que me levaram pela trela para outra sala. Deixaram-me lá sozinho. Havia espelhos por todo o lado e muitas luzes. Fazia doer a cabeça. Senti-me tonto. O ratinho, que se colara à minha barriga sem os robôs o verem, saltou em direção a uma bola enorme que estava no meio da sala e, num instante, abriu-se um alçapão. Fomos aos trambolhões por ali abaixo. O pior foi que a minha trela ficou presa na porta do alçapão. Este começou a fechar-se e eu fiquei pendurado! Já se ouvia: “Bip, Bip! Claque, clique, cloque, katchapum!”.  O ratinho, que continuava colado à minha barriga, trepou pela trela e roeu-a até conseguir desprender-me. Foi por um triz que não voltei a ser apanhado.

 Por fim, caímos noutra sala cheia de portas. O ratinho pressionou uns botões da porta mais pequena e apareceu um túnel. Já se ouviam alarmes a tocar por todo o lado. Corremos pelo túnel e chegámos a uma sala que parecia um laboratório. Havia pequenas gaiolas a toda a volta e três robôs de guarda. Entrámos e comecei a correr e a saltar em direções diferentes, para os distrair, enquanto o ratinho se escapou para a sala ao lado. Vieram atrás de mim e um deles começou “Bintivin, cintinvim, zintinvim”. Que irritação! “É desta!”. Preguei-lhe um murro. Só que não me lembrei do que o ratinho me tinha dito e apanhei um choque tão grande que o meu pelo ficou todo no ar. Os outros robôs vieram para me prender, mas, nesse preciso instante, as luzes apagaram-se e ouviu-se: Plunc! Tlunc! Bléeeemmm! Os robôs começaram a tombar, as gaiolas abriram-se automaticamente e os ratinhos saíram. Já tinham sido avisados pelo amigo do que precisavam de fazer. Não me mexi. Esperei alguns minutos, até que chegou o ratinho.

            ­— Rápido! — disse ele. ­— Sigam-me!

E lá fomos em fila indiana. O ratinho à frente, eu a seguir e todos os outros atrás. Se me dissessem que eu ia fazer aquilo, responderia que deviam estar a gozar comigo! Chegámos de novo à sala com várias portas. Não havia tempo a perder!

Desta vez o ratinho abriu uma porta com uma enorme escada em caracol. Daí a pouco estávamos ao ar livre. Que alívio! Todos os outros fugiram a sete patas e já nem se viam. Não fazia ideia de onde estávamos. Nisto, apareceu um enorme leão. Parecia transparente. Não consigo explicar o que aconteceu, mas fez-me sentir um super-herói. Olhei para o ratinho e percebi que sentia o mesmo. Foi como se alguma coisa tivesse mudado dentro de nós e tivéssemos ganhado uma capa invisível. Eu, que sempre tinha sonhado ser uma espécie de Supergato, nem queria acreditar! Quase sem darmos por isso, o leão desapareceu. Já se ouvia por perto “clique, cloque, katchapum!“

— Não te preocupes ­— disse-me o ratinho. — Se os robôs saírem da caverna, com a luz, desaparecem! Eu vi isso acontecer com um deles!

Então, fechámos os olhos, pensámos no nosso monte de sucata e corremos. Chegámos sem um único pelo a menos.

O ratinho, muito tímido, estava a querer esconder-se debaixo de um pneu.

            — Não te vás embora. Salvaste-me a vida! E nem sei como te chamas — disse eu.

            — Eu não tenho nome. Sou órfão — respondeu ele. Todos me chamam Ratinho, porque sou mais pequenino do que os outros.

            — Não faz mal. Olha, eu sou o Caraminhau. Os meus melhores amigos chamam-se Tracaminhau e Faradingau. Que achas do nome Tau? — perguntei-lhe.

Ficou tão contente! Ainda me lembro das patinhas dele esticadas na minha barriga, a querer dar-me um abraço.

            E foi assim que o Tau entrou na minha vida e na dos meus companheiros. Mal podia esperar para lhes contar o que tinha acontecido.

            Desde esse dia tudo mudou. Fizemos um pacto: o de ajudarmos todos os animais que estivessem em perigo. E que aventuras tivemos! Ah, já me ia esquecendo de vos dizer que o caixote de madeira nunca mais se viu por ali. Nem os robôs! Não faço ideia do que lhes aconteceu!

Há muito mais para contar, mas terá de ficar para outra vez, pois a Laurinha está a chegar com o meu jantar. Ela não sabe que o partilho com o Tau. Tal como eu, está velhote e só quer mesmo um sítio quentinho para dormir e uns grãozinhos de comida para sobreviver. Se ela o visse, se calhar gritava e alguém o expulsaria daqui… ou pior — nem quero pensar!  O que nos vale é que ainda temos as nossas capas invisíveis de super-heróis para nos protegerem.   

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AUTOR(A)
Teresa Dangerfield

Teresa Dangerfield nasceu em Lisboa, em 1956. É Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português e Inglês), pela Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Tradução, pela Universidade de Bristol (RU). Foi docente do Ensino de Português no Reino Unido, onde reside há mais de 30 anos.  Foi também Docente de Apoio Pedagógico na Coordenação do Ensino Português no Reino Unido. É tradutora e dedica-se à escrita, uma paixão que a acompanha desde a infância. Para além das publicações na revista Palavrar, tem contos e alguns poemas integrados em coletâneas.

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