Disseram-me:
— Vais trabalhar para o café. Vais ver: é trabalho honesto e dinheiro certinho.
Aceitei. Tinha de pagar o quarto nas águas-furtadas, sem elevador, da Rua dos Correeiros, onde o que me restava dos pertences ainda se empilhava devido à falta de mobília. O dinheiro até podia ser certinho, mas a quantidade era parca.
Disseram-me:
— Só precisas de servir cafés.
Achei ter ultrapassado desafios piores, daqueles que nos obrigam a calar, fugir e esconder, mas enganei-me. Depressa descobri que, àquele balcão, ninguém pedia café. Pediam café curto, café longo, café cheio, café duplo, café sem princípio, café em chávena escaldada, café com cheirinho, carioca. Às vezes, trocavam-me as voltas e pediam carioca de limão. Depois pediam café com leite, meia de leite, galão, garoto, pingado, e lá ia eu equilibrar o pacote de leite, para ter certeza das quantidades. Muitos pediam-me bicas, mas ninguém me pedia cimbalinos com sotaque. A todos os que procuravam cappuccinos, macchiatos e mochas mandava-os descer a Calçada do Carmo até ao Rossio, que eu nunca servi americanices.
Comprei um caderno para ir tomando nota dos cafés que ia servindo, porque eram tantos e tão diferentes que temia esquecê-los. Achei que, se fossem escritos, os podia colecionar. Dei por mim a escrever com mais detalhe o freguês do que o café que pedia. Concluí que o mesmo tipo de freguês procurava o mesmo tipo de café e que era mais interessante colecionar fregueses do que cafés.
Agora, escrevo-os nas minhas linhas, prendo-os e levo-os comigo no caderno, Calçada do Carmo abaixo até à Rua dos Correeiros e escada acima até ao quarto nas águas-furtadas. Folheio-os, um a um, à procura daquele que ainda não encontrei, e do qual me continuo a esconder.
Chamam-me:
— Ó menina.
Fecho o caderno, com a caneta entalada entre as folhas, e espreito por cima do balcão. Já não respondo pelo meu nome. Se querem que vos diga, esqueci-me do nome que a minha mãe escolheu. Foi tanto «Ó, menina, isto» e «Ó, menina, aquilo» que se colou à minha pele a alcunha e cansei-me de a contrariar. Mantém-me anónima. Mantém-me escondida. E ainda me mantém jovem. Os anos passam e sem que eu dê conta. Já não sou menina, mesmo que nunca tenham feito de mim mulher.
— Olá, bom dia. Diga, por favor.
— Café cheio.
Nem «Olá». Nem «Bom dia». Nem «Por favor». Nem tampouco «Obrigado». O freguês fixa os olhos no telemóvel, onde o polegar vai desenrolando imagens, textos e parvoíces. Tem barba cortada com régua e esquadro. Fato azul brilhante, camisa engomada, gravata pretensiosa. Ténis brancos, para dizer que tem a vida toda pela frente, que esta dura dois dias e que o Carnaval dura três. O cheiro do perfume, com o qual se banhou, enjoa-me. Pede café cheio, como cheio que está de si, de tão convencido e nariz empinado que é. Dispensa meninas de balcão, só quer senhoras de bem.
— Cinquenta cêntimos, por favor.
Pego no manípulo. Bato três vezes, para fazer cair as borras de um outro café. Encho-o de grão moído e encaixo-o na máquina, sem receber um olhar. Sirvo o café, que bebe de um só trago. Vejo-o vasculhar o bolso e atirar a moeda para cima do balcão, com os olhos ainda no telemóvel. Vira costas sem se despedir. Desaparece calçada abaixo antes que o possa insultar. Abro de novo o caderno e tomo nota. Não é ele que procuro, mas quem procuro também me fazia sentir invisível quando desabava o punho e o mundo sobre a minha mãe. Deixei de ser invisível anos depois, quando a velha do café me deu a mão.
Foi ela que me disse:
— É trabalho honesto e dinheiro certinho.
Depois partiu o pé, a perna e a anca. Agora, já não sobe a Calçada do Carmo. E eu, se continuar a subir e a descer estes degraus escorregadios, desnivelados e desiguais, também partirei pé, perna e anca, e depois já ninguém me tirará do quarto nas águas-furtadas, sem elevador, da Rua dos Correeiros.
Desta vez, ouço:
— Bom dia.
Vejo entrar uma mulher com ares de quem vem de longe. Cabelo dourado, apanhado com um elástico farfalhudo, fato de treino colorido, mochila às costas e miúda pequena pela mão. Também já me seguraram assim, como se me quisessem dar tudo, sem me poder dar muito. A pequena sorri. A grande também.
— Um café com leite, por favor.
O português entoado com esforço e os lábios sorridentes fazem-me querer sorrir com elas. Não me acontece muitas vezes. Fecho os olhos a metade e puxo os cantos da boca para trás, numa expressão estranha. Quero ser simpática, perguntar de onde vêm, quanto tempo ficam, mas mantenho a frieza.
— Oitenta cêntimos, por favor.
Martelo o manípulo três vezes, devagar, para me livrar das borras anteriores sem assustar a miúda. A mulher enfia os dedos finos dentro da carteira de pano. Está confusa. Parece pouco habituada a contar aquelas moedas. Despeja cêntimos e euros em cima do balcão e tenta sorteá-los com o indicador elegante decorado com manicura vermelha perfeita. Pouso o copo do café com leite ao lado das moedas. Aceno-lhe e afasta o dedo com vergonha. Desculpa-se com gestos. Escolho os trocos que me interessam com dedos ásperos e verniz castanho estalado. Ela faz questão de lhes pegar e de os deixar com cuidado na minha mão. Pega depois no copo que lhe servi, ajoelha-se e dá de beber à miúda. Fico a vê-las, a grande a segurar o copo, a pequena a beber e a estalar a língua de satisfação.
— Obrigada.
— Obrigada eu.
Saem as duas de mão dada. Não as escrevo. Não merecem ser presas nas linhas do meu caderno, nem voltar comigo para o quarto nas águas-furtadas. Merecem ser livres e felizes, como não fui, não sou e talvez nunca serei. Protegeram-me quando me pegaram na mão e me levaram, mas deixei mãe, sonhos e futuro para trás. Também achei ter deixado o pesadelo, mas ele perseguiu-me. Espreita-me por cima do ombro quando quer e atormenta-me. Mesmo tendo recomeçado a vida ao balcão do café, o pesadelo continua comigo. Nunca lhe fugi porque passou a fazer parte de mim.
Interrompem-me os pensamentos:
— Anda cá, menina.
Deixo chávenas e copos submersos em água e detergente. Limpo as mãos ao avental, devagar. Reconheço a voz e reconheço o tom. Passa aqui todos os dias, mas nem todos de bom humor, nem todos os dias sozinho.
— Olá, bom dia. Diga, por favor.
Este freguês sorri, olhos postos na blusa velha que abotoo sempre até ao colarinho. Tem o cabelo puxado para trás com uma quantidade exagerada de gel. Sorri e aparecem os dentes tingidos pelo tabaco ao qual tresanda. A barba, de quem nem é novo nem é velho, escurece-lhe parte do rosto e desvia a atenção das rugas que se lhe rasgam na testa.
— Arranjas-me um café duplo, jeitosa?
Gingão, brinca com a carteira, tão inchada quanto o seu peito. A aliança reluz no anelar, mas ignora-a com frequência. A camisa enfiada dentro das calças de sarja está-lhe colada ao tronco. Sinto-me desejada, culpada, atrapalhada. Bato três vezes com o manípulo do café, respirando fundo, e recomeço o ritual.
— Chávena escaldada, já sabes.
Sei, sim. Conheço-lhe os hábitos e os gestos. Observo, enquanto segura a chávena com as pontas dos grandes dedos, esticando o mindinho num malabarismo improvável, que condiz pouco com o homem que é. Café duplo porque, quando aqui vem na companhia da sua senhora, se parece com um pajem, e, quando vem sozinho, se parece com o rei da Calçada do Carmo.
— Setenta cêntimos, por favor.
Abre a carteira, cheia de cartões, talões, fotografias de família, e tira de lá um euro. Deixa-o em cima do balcão e empurra-o na minha direção com o indicador.
— O troco é para ti.
Pisca-me o olho e sai. Vai à vida dele. E fico ali, a vê-lo sair. Unhas nervosas a baterem no balcão, o pouco verniz que resta ameaça saltar. As chávenas e os copos continuam esquecidos no fundo do lava-louças, afogados em água e detergente. Abro o caderno e escrevo, apesar de já o ter colecionado antes. Pede sempre o café duplo em chávena escaldada, mas continuo a repetir a escrita das mesmas linhas. Ele vai ficando comigo, é a fantasia que me vai fazendo companhia quando folheio o caderno sozinha no quarto das águas-furtadas. Lembra-me do que me falta. Não é ele quem procuro. Quem procuro, quando me tirou tudo, também me tirou a vontade de me entregar a alguém.
Estou perdida nas minhas linhas quando entra o freguês seguinte. Senta-se devagar e corcunda na mesa ao lado da porta.
Chama-me:
— Ó menina.
— Não servimos à mesa — informo em pânico, sem «Olá» e sem «Bom dia».
Não o trato como um freguês qualquer, porque não o é. Finjo-me esquecida. Passaram muitos anos desde que me escondi. O meu cabelo está mais fraco e o rosto mais cansado. Já não tenho corpo de miúda e já não sou levada pela mão. Ele não tem como me reconhecer.
— Mas, menina, eu já não tenho idade para ir aí.
As minhas pernas tremem. Fecho o caderno. Saio de trás do balcão. Deixo a minha proteção e avanço para terreno que sei pertencer a um inimigo. Aproximo-me com cautela. Ele cheira aos muitos anos que passaram. A camisola de lã esburacada ainda é a mesma, as calças de bombazine cinza-rato também, o cabelo que lhe resta é agora integralmente branco. As peles que tem penduradas estão cheias de marcas de uma vida da qual fugi e pensei ter conseguido deixar para trás.
— Um café com cheirinho, por favor, menina.
Os olhos tingidos de sangue olham-me com uma simpatia fingida. Confirmo com a cabeça que compreendi o pedido. Antes de me afastar, sinto a sua mão ossuda tocar-me três vezes nas nádegas, como tantas vezes me tocou antes de começar a tocar-me de outra forma.
— Obrigado, menina.
Afasto-me. Regresso para trás do balcão, apesar de querer fugir porta fora. Escondera-me num café e numas águas-furtadas para nada. Anos de sacrifício e silêncio desperdiçados por um café com cheirinho. Em vez de aguardente ou bagaço, sinto o odor da raiva e do ódio. Ele sorri, desdentado, com a luz da montra a recortar a silhueta velha. Escaldo com tudo o que aquele homem me fez perder. Era quem eu procurava. Agora posso vingar-me.
Pego no manípulo do café e avanço para ele. Bato-lhe três vezes na cabeça. Borras e sangue misturados, primeiro com gritos de dor, depois com silêncio. Choro de desgosto, de medo e de loucura, depois grito também. Grito para me livrar do pesadelo. Grito por ajuda, mas já não tenho a velha do café para me dar a mão. Ele cai pesado aos meus pés, olhos e boca escancarados.
Ergo o olhar e encontro o rosto dos outros fregueses que testemunharam tudo. Afinal não era só eu que gritava. Uns corriam calçada acima, outros calçada abaixo. Eu deixei-me ficar. Sozinha, tropeçaria certamente nos degraus escorregadios, desnivelados e desiguais da Calçada do Carmo, com os sapatos encharcados em sangue. Partiria o pé, a perna e a anca, e depois ninguém me tiraria das águas-furtadas, sem elevador, onde o resto dos meus pertences continuaria a empilhar-se pela falta de mobília, porque o dinheiro até podia ter sido certinho, mas a quantidade fora parca.
Surpreendi-me. Afinal alguém me deu a mão. Talvez fosse a minha mãe para me dar a beber um café com leite, talvez fosse um guarda do Quartel do Carmo para me prender. Sei que me levaram da minha nova vida como me tinham levado da anterior. Para trás deixei o caderno com a caneta entalada entre as folhas, os fregueses colecionados e os meus pertences no quarto nas águas-furtadas da Rua dos Correeiros.