Eu devia ter uns sete anos, mal crescidos, e aquela engenhoca instável de metal, assente apenas em duas rodas, ainda me intimidava.
— Vá, pedala, que não te largo — dizia o meu avô, ajudando-me a equilibrar, com uma mão no selim. E eu sabia muito bem que ele ia largar. Talvez até já tivesse largado após aquelas duas primeiras pedaladas e todo eu abanava, qual trapezista manco, a tentar manter o equilíbrio, a direção e a calma.
A calma perdi-a, em primeiro lugar. Logo a seguir, foi-se o controlo sobre o guiador e dei por mim a pedalar em direção ao muro, tentando que a bicicleta mudasse de rumo pela força de gritos aflitos. O muro acolheu-me com a meiguice possível e o chão também fez o que pôde para não me esfolar os joelhos em demasia.
Estava ainda a decidir se enxugava as lágrimas ou o ranho, quando sinto o meu avô aproximar-se e, talvez por achar que o chão e o muro foram demasiado brandos comigo, prega-me uma valente bofetada que me arrancou os óculos da cara.
Sempre interpretei essa bofetada como fruto de frustração. Poderia também ter sido uma daquelas palmadas que damos a um qualquer objeto eletrónico que se tenha decidido a deixar de funcionar e o meu avô tivesse esperança de que eu sofresse apenas de mau contacto e não de crónica falta de jeito. Ainda assim, talvez a frustração seja a melhor explicação.
O meu avô dedicava-se a cada projeto com toda a energia, não como se a sua vida dependesse disso, mas como se a existência da própria Humanidade estivesse dependurada dos seus esforços. Tudo era igualmente importante, igualmente digno da sua dedicação e raiva: política, futebol, família, ensinar o neto a andar de bicicleta.
Quando, ainda antes dos seus cinquenta anos, o coração o avisou que estava a viver depressa demais, atirando-o para a mesa de operações após um enfarte, voltou a sua força para a bicicleta. E, como não se ficava em nada por meias medidas, transformou o sedentarismo numa paixão absoluta pelo pedalar que acabou por lhe garantir mais umas décadas de vida.
Por isso é que interpreto aquela bofetada como frustração. A frustração de não perceber porque é que os outros não se conseguiam oferecer por completo a um projeto, não agarravam as tarefas com a mesma determinação e porque é que os outros se contentavam com a mediocridade e não lhes eram intoleráveis os falhanços.
É provável que eu não tenha interpretado desta forma a dor que sentia na bochecha naquela altura. É possível que tenha apenas percebido que era melhor calar, engolir e voltar a tentar, depois de recolocar os óculos nas orelhas. Cheguei ao fim daquele dia esfolado, derrotado, calado. E ainda sem me conseguir aguentar em cima da maldita geringonça. Haveria de acontecer. E haveria de passar inúmeras horas e incontáveis quilómetros a pedalar atrás do meu avô (já que era um ótimo corta-vento), enquanto íamos descobrindo o Alto Minho.
Não lhe herdei a garra nem a determinação, porém, reconheço em mim uma disponibilidade para a obsessão numa nova aprendizagem, assim como o meu avô fez, quando as pernas deixaram de permitir tantas aventuras na estrada, e se dedicou à pintura.
Também não herdei aquela vontade de vencer a vida a correr, mesmo que para isso fosse preciso libertar as fúrias e raivas contidas.
Mas aprendi com ele.
Aprendi que nem sempre nos estendem uma mão quando estamos caídos. Que nem sempre a bonança segue a tempestade. Que, por vezes, ninguém nos ajudará a erguer quando estamos desamparados.
Aprendi que quando damos por nós no meio do chão, quer seja por aselhice nossa ou pelas intempéries do caminho, o melhor é sacudirmo-nos, levantarmo-nos e voltar a montar no selim, antes que a vida nos pregue uma bofetada.