Autor(a):

Sandra Barão Nobre

Dar o Corpo aos Pecados

Lembro-me daqueles anos, quando adolescente ou jovem adulta, em que acreditava que a vida podia ser bastante simples se nós, os humanos, não tivéssemos esta apetência estúpida para complicar tudo. Era uma ignorante que vivia no mundo do preto e do branco, alheia às infinitas hipóteses dos cinzentos.[1] Se a natureza é altamente complexa, como poderia o Homem ser simplório ou linear? O facto é que sobre este acumulado de complexidades construímos, a partir de cada indivíduo, realidades coletivas sofisticadas e intrincadas que espelham tudo o que encerramos — das facetas mais elevadas, luminosas e altruístas aos ângulos mais egocêntricos, sombrios e abjectos.

 

Para ajudar a descrever, a entender e a lidar com esta oscilação perpétua entre luz e trevas, alguns de nós tornam-se artistas e fazem da sua arte um meio para reconciliar os desejos individuais com as exigências do colectivo. Assim, através das obras de arte, os artistas e os seus públicos têm oportunidade para dar vazão a “desejos banidos pela cultura, repudiados pela educação ou conscientemente reprimidos”[2]. Como forma de expressão artística, as histórias de ficção abraçam também essa função: enquanto leitores, ao aceitarmos adoptar os conteúdos ficcionados como nossos e como reais, ao identificarmo-nos com as personagens e as suas circunstâncias, ao fruirmos esteticamente de alegrias e dramas, podemos dar azo a “uma libertação espontânea e não censurada de emoções”[3], podemos viver uma catarse que é fonte de prazer.

 

Para o processo biblioterapêutico, cujo grande objectivo é contribuir para o desenvolvimento e o bem-estar do ser humano, a identificação e a catarse são fulcrais. Enquanto biblioterapeuta, e pessoa que lê por prazer, vivo com particular interesse estes fenómenos através das histórias que nos levam ao encontro do lado mais escuso da nossa psique — por exemplo, a identificação com os anti-heróis, com os maus da fita, o regozijo perante tragédias e a consumação de transgressões éticas e morais que vemos como repositoras de um certo equilíbrio ou justificadas por um certo sentido de justiça, muitas vezes feita pelas próprias mãos.

 

Quando lemos sozinhos, em silêncio, e suspendemos por instantes a realidade com todos os seus constrangimentos e forças convergentes e uniformizadoras — as mesmas que sabemos, em boa consciência, serem necessárias para viver em sociedade e que defendemos com convicção quando as vemos ameaçadas —, sentimo-nos livres para dar asas a emoções, sentimentos e características que são incompatíveis com o ideal do ego, que procuramos esconder, disfarçar, mas que serão sempre, em menor ou maior medida, parte integrante de nós: sentimentos de inveja, comportamentos mesquinhos, ataques de ira, desejos de vingança e de morte, desprezo pelas fragilidades dos outros, atitudes de sobranceria, etc. Neste laboratório que é a leitura de ficção, sabendo hoje, como demonstra a imagiologia moderna, que o nosso cérebro se alinha com a psique das personagens, damos, literalmente, o corpo aos pecados. E que bem que sabe!

 

Sim, que bem me soube, numa tira de Quino, o estalo que a Mafalda dá à Susana quando lhe faltam argumentos para explicar que ter muita cultura importa mais que ter um armário cheio de vestidos. Sim, que bem me souberam todos os golpes desferidos por Miss Piggy, nos bastidores d’ Os Marretas, para impor os seus caprichos artísticos (a sério, nunca vos apeteceu apertar o pescoço a um chefe ou esbofetear um colega de trabalho?). Sim, que bem me soube o final de “Apneia”, de Tânia Ganho, um desfecho que eu desejei intensamente desde muito cedo na leitura daquele romance, porque há patifes que não merecem viver. Sim, admito com uma ponta de vergonha, vi na desgraça que se abate sobre Lila, da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, uma forma de justiça, como se aquele sofrimento inominável a apresentasse, finalmente, ao sofrimento que infligiu a todos os que manipulou sem escrúpulos e com perversidade. E que bem me soube, no conto “A uma hora tão tardia”, de Claire Keegan, o sovina Cathal ser espezinhado por Sabine poucas horas antes do casamento.

 

Portanto, leiamos para purgar a lista de pecados biliosos que carregamos. E sigamos mais leves e harmonizados na vida real, no quotidiano, sabendo que, ao menos, as histórias nunca nos julgarão.

 

[1] Alusão ao poema “A hipótese do Cinzento”, de João Luís Barreto Guimarães em “Nómada”, Quetzal Editores, 2018

[2] “Bibliotherapy: A Theoretical and Clinical-Experimental Study”, Caroline Shrodes, Universidade da Califórnia, 1949, pág. 2-3

[3] Idem, pág. 36

Dar o Corpo aos Pecados
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AUTOR(A)
Sandra Barão Nobre

Licenciada em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa (1995), dedica-se em exclusivo à Biblioterapia como profissional independente desde 2016. Para tal, somou ao Certificado de Competências Pedagógicas (2013) um Certificado Internacional de Coaching Practitioner (2016), uma formação em Biblioterapia para a Infância e Juventude na Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto (2016) e uma Pós-Graduação em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó, no Brasil (2022). Acompanha clientes particulares e corporativos em processos biblioterapêuticos, coordenada projectos biblioterapêuticos em várias instituições (estabelecimentos de ensino, empresas, associações, hospitais, etc.), dinamiza acções de formação sobre Biblioterapia e a promoção da leitura, produz conteúdos sobre Biblioterapia e dinamiza eventos em torno da Biblioterapia e da leitura para entidades parceiras.

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