Miguel fora apanhado pelo neto a comer pão barrado com manteiga e coberto de açúcar.
— Então, avô?
— Apeteceu-me. Em pequeno, havia este hábito.
— Faz-te mal.
— Não tenho diabetes, análises dentro dos parâmetros.
António calou-se, fixou o olhar no volume abdominal de Miguel e tocou-lhe, em jeito de afeto. Uma espécie de aviso velado. Dizer à avó era ouvi-la: — “Não tens cuidado com o sal e com o açúcar…” Uma lengalenga que servia para um encolher de ombros da parte do avô.
Silenciou o incidente, mas ficou atento. Aquele homem terno e rigoroso que o aconselhou, o criou, o ensinou a comer com moderação deixou-se vencer pela gula? A desligar-se da manutenção da saúde?
Ele que o alertou para o problema do tabagismo. De facto, é viciante. A nicotina envolve prazer. Torna-se difícil abandonar o cigarro.
Como poderia ter moral para impedir o avô dessa vontade de doçaria? Esboçou um sorriso e pensou “o avô adora doces e comida. Fica hilariante com uma bela feijoada, um guisado de vitela, uma sobremesa…A avó a tentar que reduza o peso”. O cardiologista sugeriu caminhada, exercício físico. Não fosse ela a promover a hidroginástica, o passeio diário, Miguel passaria tardes e manhãs no sofá, frente ao televisor e o telemóvel nas mãos. Vai dormitando, como se não tivesse descansado durante a noite.
— Miguel, larga a preguiça e vamos fazer a nossa caminhada. Como consegues estar tão mal sentado o dia inteiro?
— Lá vens com as tuas ideias. Algum dia faltei ao trabalho? Agora chegou o momento de relaxar.
As discussões versavam sobre esta falta de vontade de Miguel. Era insuportável vê-lo desprendido de quaisquer afazeres. Colocar uma lâmpada fundida, reparar o tampo da mesa do jardim era ouvir:
“Amanhã faço”. Elvira desesperava com este “deixa andar”.
Ela encontrou formas de se libertar: integrou-se em atividades seniores promovidas pela Junta de freguesia e pela Universidade. Fora professora, a profissão que a preencheu.
Amava os alunos. Ensinou-lhes matemática de forma a desfazer o mito da dificuldade.
Conseguiu motivá-los, muitos seguiram cursos ligados a essas matérias que considerava imprescindíveis no quotidiano. Os pais dos alunos propuseram-na para o concurso “Professora do Ano”. Quis recusar, mas as evidências foram além da escola e dos alunos.
Ganhou o prémio. Ofereceu o valor para a compra de livros para a biblioteca da escola.
Revia esses anos dourados com humildade. Lembrou a inveja de colegas que tentaram denegrir o seu método. Nessa ocasião, promoveu um workshop, desvendando estratégias de aprendizagem. Os colegas, a burocracia impediram-na de outros voos.
Apesar disso, sentia-se realizada. Conjugou com destreza a vida pessoal, familiar e profissional. Fez estágio com dois filhos, quase gémeos, deu de mamar ao pequenino, sem descurar o mano de dezoito meses, e isso valeu-lhe um princípio de esgotamento. O Miguel ajudou muito. Nessa ocasião, era um jovem determinado, pontual, participativo. Tem saudades desse tempo, da partilha de tarefas e preocupações. Companheiros com sentido de vida comum. Um casal simples, amoroso, mãos dadas e pensamentos positivos.
Rechearam a casa, sem luxos, de forma acolhedora. Trouxeram amigos, organizaram festas de convívio, viajaram bastante durante as férias.
Ao recordar, a urgência em dar sentido aos dias de ambos tornou-se premente. Marcou um jantar de família. Vieram todos: filhos, noras e netos. Serviu bacalhau espiritual e rolo de carne. O marido enfadado com a elegância da mesa e com o labor de ter o almoço pronto a ser servido.
Acabava por gostar daquele alarido familiar. Ali se corrigiam maneiras descuidadas à mesa: “espera que te sirva”; “limpa a boca antes de beberes água.”
Saciados, sentaram-se na sala de estar a degustar o café e o bolo de chocolate. Miguel adormeceu de imediato. Os roncos não tardaram. A caminhada em família, estipulada à chegada, fez-se sem o patriarca. Elvira pediu desculpa aos filhos.
— Custa ver o pai sem ação. Está pesado. Passa os dias aqui na saleta. O médico instigou-o a fazer exercício.
— Lamento, avó, mas é a segunda vez que o apanho a comer açúcar. Ontem pegou num pacote e comeu-o. Não quer aceitar o mal que lhe faz o açúcar refinado.
Tristonha, recebeu ânimo da família. Deram um passeio pelo parque infantil onde os netos mais novos correram e brincaram.
Os filhos, instados pela mãe, preparam-se para conversar com o anfitrião.
— Paizinho, acorde. Queremos falar consigo. Fomos passear e o pai a dormir. Viemos para estarmos consigo.
— Que querem? Tenho sempre sono. Até adormeço no dentista.
Elvira fervia como panela de pressão, mas deixou que Miguel se desculpasse e os filhos o aconselhassem.
— Paizinho, está aposentado, não está retirado do percurso de vida. Ouviu o seu neto mais velho sobre a sua gulodice. Compreende que o corpo lhe está a dar sinais: excesso de peso, sonolência, pés inchados… A gula e a preguiça de sair do sofá estão a dominá-lo.
— Deixa lá o meu corpo. Quero lá saber da espondilose, da respiração entrecortada, da vontade de comer doces e petiscos. Estou bem. Vê as análises.
O filho mais velho, Xavier, enfermeiro, corroborou a opinião do irmão. Prometeu vigiar-lhe o peso, a tensão arterial e a ocupação do tempo.
— Mãezinha, vamos começar por uma dieta alimentar menos pesada e em menor quantidade. Têm de cumprir as metas de mobilidade que vos coloquei no telemóvel.
Xavier reafirmou os cuidados a ter para uma vida longa e saudável. Importa livrar o corpo dos pecados que o deixam doente.
Voluntarioso, Miguel travava uma batalha entre o útil e o prazer de se deixar ficar preso aos hábitos. A balança revelou o que preferia ignorar. Um estorvo ao sossego. E os filhos a zanzar à sua volta. Aquela verve despropositada. Urubus. Para seu bem? Gozar de saúde? Como se evita a decadência? Ilusões de quem ainda não se preocupa com a finitude.
Elvira pensa em diversão e rejuvenescimento. Uma criança grande. Uma flor a vingar por entre as silvas dos anos. Queixa-se de falta de conexão. Como se a tira do tempo tivesse parado.
— Não, Vira! Mudámos. Evito planos, deslocações, convívios. Coisas do passado, do cumprimento de conveniência social e profissional. Estou livre de compromissos que me desgastaram durante anos.”
Fora um homem reservado, cumpridor, trabalhador. Aquele rosto níveo oval, marcado por olhos negros e perscrutadores, encantaram a esposa. Agora, lê neles fadiga. Parece-lhe outra pessoa. Questiona o que aconteceu. Como? Quando? Não se apercebeu deste desfazer da partilha, do esmorecer gradual da relação. Há em si uma nebulosa. Lamenta a perda. Os beijos sabem a ferrugem, a desgaste. Os corpos, outrora abertos às carícias, perderam a sensualidade. Pesam chumbo e quedam-se como tralha que se guarda no sótão, em vão. Comprimidos para dormir, para as dores, para o coração, amparos químicos de substituição dos afetos. Recorda noites perdidas pela ausência de sexo. Abordou o tema. Referiu a importância do carinho, do desejo. Miguel queixava-se de exaustão, do trabalho, da necessidade de descansar. E ela? Também tinha trabalho. Lidar com adolescentes não era fácil. Acabava a chorar baixinho até se erguer e secar as lágrimas com desabafos no papel liso que a apaixonava. Acariciava os cadernos, caneta em punho e as queixas fluíam em vagas altas. Um oceano tumultuoso que liderava, semeando queixumes espraiados nas folhas brancas. Colocava esses escritos na mesa de cabeceira na esperança que o marido os lesse e reconhecesse o sofrimento dela. Se os leu, nunca os referiu. Um desdém que a consumia. O desinteresse foi ganhando as noites, propagou-se aos dias e consumiu a relação. Sobraram as cinzas e as memórias de anos felizes. Foram fogo. Arderam de desejo, consumaram o amor que prolongaram até ao ruir de uma das traves. Muniu-se de coragem e conversou com a ginecologista, uma amiga. Fê-lo com leveza. Sem querer manchar a imagem do marido.
— Os casamentos passam por fases, consultem um urologista e exponham a situação.
— Sabes, o Miguel é tímido.
— É um médico. Procura as causas através de exames, sem preconceitos. É uma doença como qualquer outra. Carece de ajuda. Limitou-se a concordar com a cabeça, mas o pensamento esbarrava na libido do marido e na fuga à conversa. Como iria persuadi-lo? Havia um desinvestimento na sexualidade a par da crença que um homem está sempre preparado para o sexo. Considerou que esse cenário perturbaria a relação. Contudo, falou-lhe da consulta e da necessidade de terem uma vida sexual normal.
Miguel discorreu sobre o amor que sentia por ela.
— Sei que me amas, mas sinto falta do que já tivemos.
— Dizes bem, já tivemos. Nenhum de nós tem o mesmo desejo.
— Eu tenho!
— Vira, tem calma. Olha para nós juntos e felizes. Filhos, netos… Aceita!
Elvira desistiu de continuar a focar as suas ansiedades e vontades. Colocou a resolução da questão em si. Um corpo menos apetecível. Falta de vestuário sensual e de uma aparência apelativa. Adquiriu roupa interior sexy, pijamas e vestuário exterior renovados para um recomeço.
Nem uma palavra sobre a mudança de visual.
— Gostas?
— Fica-te bem. Soberbo.
O silêncio irrompeu no meio do espanto da novidade. Uma cegueira para durar?
Levou anos até deixar de se importar e aceitar a condição que doravante lhe serviria como sapato usado que continua a calçar.
Recusou as evidências. Permitiu-se levantar a voz junto do médico de família. Não lhe foi prazeroso expor a intimidade de casal. O doutor Seabra amenizou aquele grito com “é normal haver estas situações, sobretudo na mulher. São muitos os fatores. Vamos começar por fazer exames de rotina a ambos. Conversamos depois dos resultados”.
Para espanto de Elvira, o marido empenhou-se em marcar análises, radiografias, toda a panóplia de exames. Um passo à gigante. Veio-lhe a brincadeira que faziam com os filhos: “Ó mamã, dá licença?” Queriam passos à gigante. Gáudio, meta à vista. Estes jogos eram uma perdição nas festas de aniversário e em parques públicos. Harmonia entre adultos, crianças e natureza. O sabor do frango, do bacalhau à Brás ou dos panados parecia diferente. Os cinco sentidos em sintonia na chegada do bolo de aniversário, iluminado por velas mágicas que se recusavam a fenecer. Riam, cantavam, batiam palmas. De vez em quando, uma voz de sonoridade desconhecida exclamava “Apaga as velas. Não cuspas o bolo”. Era Miguel a surpreender. Sentido de humor para continuar a festa. O jogo de futebol inacabado, as subidas e descidas de skate, as conversas prosseguiam, longe do frenesim da cidade. Dias de sonho, de liberdade.
— Miguel, os resultados dos exames.
O médico suspendeu o veredicto e analisou o fácies dos pacientes. Elvira tranquila. O esposo a bater o joelho, qual máquina de costura.
— Está ótimo! Pronto para aquela viagem?
— Doutor, estraga-me a surpresa.
Elvira sorriu. “Virou, virou, virou”, a frase de ordem dos desportistas a perder golos. Uma viagem organizada pelo marido. Um presente? Um pedido de desculpas? Viraria a sua vida conjugal? Mudanças à vista, recolheu-se ao silêncio, augurando um futuro próximo risonho, na companhia do marido.
— Gostaste da ideia de conhecermos a Austrália? Um mês para nós.
— Já marcada?
— Claro! Se estivesse com problemas, íamos na mesma. Poderia ser a última.
— De saúde “para dar e vender”, reiniciamos o gosto de viajar.
Dias de preparação: roteiro; hotéis; sítios a visitar; roupas e calçado adequado. Entusiasmo de náufragos na sua própria embarcação a clamarem por uma oportunidade de redenção.
Presos em si como novelos de lã a desembaraçar. Uma vez soltos os fios, tricota-se a primavera, abrindo mão do inverno tristonho. Plantaram rosas não querem colher cardos. Embora perfumadas, os espinhos hábeis surgem ao menor toque por entre o odor e a beleza. Serão girassóis em busca de sol. Continuarão a percorrer o fio do tempo até à finitude.