Seria a terceira vez que me acontecia. Dei por mim a voltar atrás e seguir pelo corredor dos produtos de higiene. O bulício do hipermercado marcava o som dos meus passos hesitantes. Fiquei de frente para a prateleira. Uma infinidade de sabonetes desfilava e eu sem perceber a razão de me sentir colada a um aroma. Sim. Era um perfume tocante aquele que me prendia nas últimas idas às compras.
Muitos de nós já se sentiram impelidos a descobrir a razão de uma qualquer memória ou evento despertar uma tempestade, daquelas que nos deixam sem alternativa, salvo acreditar que encontraremos algo que nos tranquilize e nos permite apreciar o dia com toda a sua paleta de cores. Somos artistas da vida: às vezes pintores desesperados de mágoas; outras vezes cantores de melodias penosas e outras ainda de papéis secundários que deprimem. A vida é rica de desassossego, não é verdade, leitor? Abandonei o corredor, não sem antes memorizar aquele aroma e aconchegá-lo no coração.
Quando cheguei a casa, o telefone tocava. Corri para atender.
— Bom dia! Sou a Conceição e estou a ligar-lhe para lhe apresentar o nosso cartão “vinte em um”. Para efeitos de qualidade, a chamada vai ser gravada…
O perfume sereno que trouxera comigo rebentou nesse instante. Sem azedume, socorri-me do menu desculpas, sempre disponível, e desliguei. Só me apetecia processar a senhora que tivera a ousadia de me arrastar para uma realidade enfeitada de impaciência e ruído.
Sentei-me no sofá e liguei a televisão, apenas na tentativa de amenizar a má disposição temporária. Pela janela, a tarde espreguiçava-se ao som das badaladas da igreja. Uma, duas, três, quatro. Não consegui evitar que o desassossego da memória invadisse a sala.
Fui eu que pretendi regressar à memória e não ela que se intrometeu por mero prazer. Quando estamos inquietos, esquecemo-nos de escudar o coração e toda a realidade se pinta de um ar cinzento que enevoa qualquer alegria vivida. Por isso, recordei o momento em que provei o sabor do pânico. A minha família de três estava prestes a dissolver-se nas agruras da vida. Perdi a paz naquela noite, quando a terra se mexeu mais do que deveria, quase numa cumplicidade que conspirava a favor do tormento. O pai, deitado no chão, a babar-se e a gritar Sou Deus, soma das frustrações de não resistir ao vício que o acompanhava há anos; as estantes a tremerem e a expulsarem os livros da sua familiar disposição; a minha mãe, transfigurada pela raiva de ter oferecido tantas oportunidades, pronta a libertar-se do fardo; e eu, espetadora (in)voluntária, com um grito de clemência preso na alma. Vivi momentos de mágoa, ressentimento, revolta, mas este considero-o a única ocorrência em que senti o abismo no coração e me abandonei ao destino.
Endireitei-me e voltei à sala. Com frequência, o que as experiências têm para nos ensinar mascara-se de formas estranhas. Bem desperta e ciente de que estava a salvo, relembrei as palavras vomitadas pelo surround sound nesse esfumado 1997: “O destino marca a hora”. Peguei no telemóvel e pesquisei a expressão. A fotografia de Toni de Matos com a legenda do título do filme fez-me suspirar. Tantos anos circularam desde essa noite e nem me apercebi que bastava um despertar para regressar a tempestades, que, por serem pretéritas, deveriam dar lugar à bonança. Levantei-me e fui até à varanda. Recebi a frescura do orvalho outonal e sorri. Dei por mim a refletir sobre banalidades como um telefonema, um pneu furado ou até uma unha partida que desassossegam e nos tornam incapazes de admirar a calma que habita em nós. Talvez as situações possam desencadear tormentos, mas somos capazes de ripostar. Nem que seja porque acreditamos que é possível.
O telefone voltou a tocar. Revirei os olhos, com vontade de resmungar. Olhei para as horas. «A mãe já chegou do trabalho.» Precisava de ouvir a sua voz. Após os cumprimentos habituais, perguntei-lhe sobre o filme, o que acontecera na noite do tremor de terra ao som de o “Destino marca a hora”. Pretendia acalmar o coração, desejava anular o que aquela memória, truque do inconsciente, me oferecera, mas os segundos de silêncio da mãe falaram por si. Percebi que vivera, de facto, o assombro de ver a minha família de três desfeita pelo som espirrado da violência. Agora que penso nisso, apercebo-me de que nunca falámos sobre a força que nos empurrou para a felicidade do hoje. Mas continuemos. Para aligeirar o ambiente, contei-lhe sobre o meu comportamento caricato frente à prateleira dos sabonetes. Ela desatou a rir e só repetia «É impossível. Eras muito pequena». Contou-me que devia ser um sabonete que a avó comprava aos senhores das vendas a despique na romaria da aldeia. Prometeu-me que me oferecia um Chipre Imperial: desde 1984, eucalipto, especiarias, laranja e lavanda.
Em poucos dias, recebi o retângulo aromático e a doçura da vida espalhou-se por todas as minhas células. Como é possível uma recordação de infância, após milhares de dias nascidos, ter o poder de me envolver numa calmaria tão vibrante?
Hoje, o aroma da serenidade descansa na estante perto da minha secretária. Sempre que as descidas do meu percurso me obrigam a colocar as mãos nos joelhos, quase pronta para desistir, pego no sabonete e inspiro o seu poder tranquilizador, que me recorda quem fui, mas sobretudo quem sou.
Confesso que não quis ver o filme. Se não me faz olhar em frente e encontrar o caminho no meio das tempestades, não importa. Acredito que, quando ressoarem as badaladas da vida, o aroma do sabonete brindar-me-á com a tranquilidade já conquistada. É este o dom das simplicidades que decoram a vida!