O funcionário de serviço, naquele fim de tarde, arregaçou as mangas, retirou a chave do gancho onde estava suspensa e dirigiu-se ao auditório com o propósito de confirmar, tal como lhe fora ordenado, se tudo estava preparado para a sessão de poesia, antes da chegada do convidado e do público que o viria ouvir. Abriu a porta e estacou. Algumas dezenas de ratinhos inquietos corriam por todo o espaço, cheirando esmiuçadamente a alcatifa cinzenta sobre a qual deslizavam, confundindo-se com ela. Atónito e aflito, pensou na urgência de se libertar daqueles indesejáveis intrusos, ainda para mais, uns atrevidos que nem se inibiam de lhe farejar os sapatos ou passar-lhes por cima, de um lado para o outro, e até de lhe mordiscar os atacadores. Desatou a bater com os pés no chão, como se fosse um bailarino de flamenco, e pegou numa bengala, esquecida por algum conferencista anterior, do suporte para guarda-chuvas junto à porta. Segurou-a com firmeza pelo castão torneado e começou a desferir golpes em todas as direções, procurando atingir os roedores ou, ao menos, assustá-los e forçá-los a fugir dali para fora.
Em vão. Os ratinhos pulavam, davam cambalhotas e soltavam guinchos excitados, enquanto ludibriavam cada uma das bengaladas com que o homem fustigava o ar.
— Esperem lá, bichos do diabo. Já vos digo como é! — vociferou, enquanto abandonava o auditório.
Os ratos entreolharam-se com inquietação, tentando adivinhar os possíveis significados implícitos na ameaça. Eles bem sabiam como os humanos podem ser cruéis para com os outros animais, uma crueldade que, aliás, não se coíbem de exercer sobre os da própria espécie. Porém, também confiavam na sua esperteza, pois, como é do conhecimento geral, poucos seres são tão espertos quanto os ratos. Por isso, ainda que mais cautelosos, nenhum deles se dispôs a sair da sala.
Temendo que, nesse ínterim, algum convidado apressado chegasse antes da hora prevista e fosse surpreendido pela infestação de roedores, o funcionário foi buscar um rolo de fita-cola e uma folha de papel. Nela, escreveu com letras bem grandes:
Atenção! Desratização em curso.
e colou o aviso na porta, antes de se afastar.
Atravessou a rua e dirigiu-se à casa da Dona Hortênsia, certo de que lá encontraria o gato gordalhufo que todos os dias se pavoneava na zona e, amiúde, tinha mesmo o descaramento de entrar no auditório para tirar um cochilo sobre o assento de uma das cadeiras. Já o expulsara de lá inúmeras vezes, hoje, contudo, ia requisitar os seus préstimos, prometendo-lhe, como recompensa, uma generosa fatia de fiambre a que o glutão, por certo, não conseguiria resistir.
O Gato Esteves, assim se chamava o bichano da Dona Hortênsia, estava deitado sobre o tapete da porta de casa com os olhos semicerrados por uma grande sonolência — uma daquelas que inevitavelmente nos domina após uma opípara refeição. Abriu-os de imediato e sentou-se em alerta, ao ver que o homem se lhe dirigia. Deixou-o falar e foi lambendo uma pata… e depois a outra, enquanto ouvia e refletia sobre a proposta. Bom, caçar ratos era divertimento garantido e quanto ao fiambre, sem dúvida, um bom petisco. No entanto, já jantara… e bem. Só de lembrar o saboroso patê de atum, voltava a ficar com água na boca. Passou a língua pelos lábios e bigodes para não deixar pingar saliva no tapete, enquanto continuava a ponderar. Para além disso, a “serigata” da Cremilde, a bichana da vizinha Adelina, estava prestes a passar, como sempre acontecia ao cair da tarde. Serigata, sim! — Os humanos têm a mania de dizer serigaita. Tolice, já se vê! Porque é de uma gata que falamos. E que gata! Como gostava quando ela o fitava, provocadora, com os seus olhos verdes irisados. Não. Nem pensar! Dali não arredaria pata!
— Miau, renhau, nhau, miau, miau — disse o Gato Esteves, pousando as quatro patas no chão e arqueando o dorso bem alto. — Miau, miau! — concluiu perentório e voltou a enroscar-se no tapete.
Claro que o homem não entendeu que ele miara: “Expulsas-me dos estofos fofos das cadeiras da sala de conferências e agora queres a minha ajuda para afugentar a rataria? Desenrasca-te! Hoje já encerrei o serviço”. No entanto, viu que não poderia contar com o felino e precisava de se apressar a encontrar outra solução.
Pensou ligar ao seu superior hierárquico, mas lembrou-se que, à saída, ele lhe dissera não querer ser incomodado por motivo algum, delegando-lhe toda a responsabilidade pelo bom decurso do evento agendado para aquela tarde. Não podia dar parte de fraco.
Regressou ao edifício do auditório, entrou no gabinete da direção, sentou-se à secretária, ligou o computador e aguardou que o ícone a confirmar o acesso à internet se tornasse visível. De seguida, digitou a palavra “desratização” no teclado, clicou a tecla enter e logo no ecrã surgiu uma lista de firmas especializadas nessa função. Escolheu uma ao acaso, telefonou e contratou-lhes os serviços com a máxima urgência. Depois, deixou-se ficar no gabinete confortavelmente refastelado na cadeira do chefe, com as mãos atrás da cabeça e as pernas esticadas sobre o tampo da secretária. Havia que esperar e nenhum lugar era melhor para o fazer. Gostava do aconchego daquele espaço. Um dia, o diretor serei eu, pensou, suspirando autocomplacente.
***
Enquanto isso, o poeta chegara e, como não encontrasse ninguém no átrio ou no corredor, dirigiu-se ao auditório e entrou, sem reparar no aviso suspenso na porta. Distraído, como, já se sabe, são todos os poetas! Ou melhor, não é bem que sejam distraídos. É só porque as suas cabeças estão sempre ocupadas na busca de metáforas, aliterações, métricas, assonâncias e rimas para melhor falarem de todas as coisas do mundo. Ficou satisfeito por encontrar a sala vazia: assim poderia ensaiar um pouco antes que se enchesse de público. Subiu ao estrado, pigarreou para aclarar a voz, fechou os olhos para aclarar a memória e recitou o primeiro poema que selecionara para a sessão. Quando terminou e abriu os olhos, agora habituados à obscuridade da sala, reparou que sobre cada cadeira da primeira fila brilhavam sequências de pequenos pontos luminosos que, por instantes, se moviam e logo voltavam a fixá-lo.
Parecem pirilampos, pensou o poeta sorrindo. Nunca vira uma audiência assim. E já tivera muitas. Algumas reverentes, que o ouviam com respeito e agrado; outras, tão silenciosas quanto as anteriores, contudo, sonolentas e pontuadas por bocejos dissimulados; outras inquietas, de adultos tagarelas que cochichavam todo o tempo, indiferentes ao sentido das palavras, mas que, no final, talvez para compensar a desatenção, aplaudiam com entusiamo. Também já tivera plateias de meninos mal-educados, entretidos a atirar aviões de papel uns aos outros, a trocar dichotes, ou a fazer jogos à descarada. Uma plateia de pirilampos era algo inédito na sua carreira de poeta, porém, encantador!
Recordou quando era menino, a correr pelos campos, animados ao sol-pôr pelo canto estridente das cigarras; e os vaga-lumes — como na sua aldeia chamavam aos pirilampos — acesos na noite escura. De súbito, dos seus lábios brotaram estrofes que compusera nesses dias longínquos e que a acritude da vida o havia feito esquecer. E de um em um, foi declamando todos os poemas que a fantasia daqueles pontos de luz tinham despertado no seu ser.
***
O chefe dos exterminadores abriu a porta da sala de conferências com cautela e espreitou para o interior. Na sua retaguarda, toda a equipa, trajada a rigor para a função e munida de poderosos pulverizadores de veneno letal, aguardava a ordem para atacar. Pareciam um bando de astronautas armados, por detrás do qual, se encolhia o funcionário do auditório que lhes encomendara o serviço. Preferia manter-se a alguma distância, não fossem os malditos ratos roer-lhe os sapatos ou roubar-lhe os atacadores.
Nem o vate, nem o seu público deram pela intromissão dos recém-chegados, apesar de a claridade no recinto ter aumentado, após a abertura da porta. Ao deparar-se com o recitante, cuja presença ali todos ignoravam, o chefe dos desratizadores estacou e ergueu a mão direita para suster o avanço dos seus homens. Nunca vira nada assim. Seriam estes os verdadeiros ratos de biblioteca de que ouvia falar?, questionou-se. Sempre lhe haviam dito que a expressão se aplicava às pessoas que passam horas a ler, sem jamais se cansarem de o fazer. Mas… Na verdade, já vira um documentário sobre uma colónia de morcegos, mantida numa biblioteca com o fim de ajudar a preservar os livros, pois estes mamíferos insectívoros caçam as traças que adoram devorar as folhas de papel, com especial apetência pelos fólios e manuscritos mais antigos e preciosos. Ora, se há morcegos numa biblioteca, será possível que lá vivam também ratos? Abandonou estas cogitações e atentou nas palavras do trovador: falavam de vida, e de amor, e de respeito entre todos os seres da criação.
Sobre as cadeiras da primeira fila, os ratinhos alinhados em grupos de dez ou doze escutavam em silêncio. Alguns faziam oscilar as caudas lentamente, em evidente comunhão com os versos solazes que ouviam. Dos olhos de alguns, escorria mesmo uma lagrimazita que se demorava, por segundos, sobre os pelos do focinho, antes de cair e se perder no estofo da cadeira.
O poeta chegou à linha final da última estância e calou-se. Não houve aplausos, nem esperava que os houvesse. Descerrou as pálpebras e, com a maior luminosidade que reinava agora na sala, notou que a sua audiência de pirilampos, era afinal composta por ratinhos amantes de poesia e compreendeu que o que antes vira na escuridão fora o brilho dos seus olhitos deslumbrados.
O recital terminara. O chefe do pelotão de desratizadores deu, aos seus perplexos subordinados, ordem para dispersar. Hoje não haveria matança, porque acabara de ouvir uma ode à vida e ao amor pelo outro, em palavras que se haviam aninhado, macias, no ouvido e repercutido em ondas de harmonia aniquiladoras de qualquer ímpeto de ódio.
O poeta desceu do estrado e saiu. Passou pelo grupo de homens-astronautas sem manifestar estranheza. Na verdade, nem deu por eles, pois já uma nova maré de rimas lhe inundava a mente.
Enquanto isso, num ápice, os ratinhos saltaram das cadeiras, rumo aos seus esconderijos secretos. Partiram, ninguém viu para onde.
Na sala, só a força pacificadora da poesia permaneceu.