Faltam três horas para o voo com destino à Madeira. O mês de férias passou vertiginosamente.
Enquanto esperamos sentados no Burguer King e os meus filhos brincam com o Estrelinha, o novo elemento na família, eu revejo os melhores momentos das férias, com um aperto na garganta.
O Estrelinha, dentro da transportadora, mia como se estivesse a pedir para sair. Começo a viajar no tempo. Quando era criança, queria ter um gato. Tinha uma cadela, a Lassie, uma pastora alemã.
Olho para a frente e vejo um jovem que, em vez de se dirigir ao balcão, vem em direção a uma mesa ao lado da nossa e, rapidamente, pega nos restos do hambúrguer e das batatas fritas e afasta-se a comer avidamente. Fico paralisada, vendo-o ir em direção à porta. Parece-me que já deve ser hábito esta forma de colmatar a fome.
Olho para a alegria dos meus filhos, que têm a possibilidade de sonhar e de se projetar no futuro, sem ter a preocupação de procurarem satisfazer as necessidades básicas.
Ele parece ter entre dezassete e dezanove anos. Uma idade em que os jovens fazem escolhas, sonham com o seu futuro, vão para a universidade ou optam por outras oportunidades, mas sonham. Porém, esta é apenas uma parte da história. E este jovem? Quais serão os seus sonhos? Faz-me pensar que a frase “O sonho comanda a vida” não se aplica a todos. Talvez a frase “A vida comanda o sonho” se adeque melhor àquelas crianças e jovens, que, quando são chamadas à vida, não escolhem: a família, o local onde vivem, as condições adversas que vão condicionar o seu desenvolvimento e a sua trajetória. Quando o cérebro está em modo de sobrevivência, haverá espaço para sonhar?
E a genética? Sim, a genética condiciona, mas o contexto tem um impacto, maior ou menor, no potencial de cada um, bem como na capacidade de sonhar. No decorrer dos vinte seis anos que trabalho com crianças e jovens, tenho colocado várias vezes as perguntas: “Quais são os teus sonhos?”, “Qual é o teu maior sonho?” Alguns ainda conseguem imaginar: “Quero ser o Cristiano Ronaldo!”; “Quero ser cantora!”; “Quero ser bombeiro!”
Ultimamente, tenho feito a mesma questão a alguns jovens. Olham para mim como se estivesse a falar outro idioma ou como se fosse uma pergunta estranha ou mesmo descabida. A resposta tem sido “Não sei!” Este “Não sei!” tem um sentido mais profundo. Quando escuto, para além do som das palavras, é como se dissessem: “Como posso saber?”, “Como é que posso sonhar?”, “Para quê sonhar?”.
O sonho comanda a vida. E quando resta apenas a vida?
Há vinte e seis anos que anseio reescrever estas histórias cujo guião tem como desfecho final: que todas as crianças e jovens tenham as necessidades básicas satisfeitas; que todas as crianças e jovens tenham direito à educação; que todas as crianças tenham uma família que as ame; que todas as crianças e jovens tenham alguém que as aconchegue ao deitarem-se; que todas as crianças tenham alguém que lhes leia um livro de embalar.
Entretanto, a realidade segue com outro guião: os protagonistas são buscadores de sobrevivência.
Será que o sonho comanda a vida, ou que a vida comanda o sonho?
Sou uma pessoa com fé e esperança. Sou persistente no que é fundamental para a minha vida: a defesa dos direitos das crianças e dos jovens. Acredito que têm direito a serem amados incondicionalmente.
Quando ouço algumas pessoas a defenderem os direitos dos animais, e eu gosto muito dos animais, penso sempre: porque não defendem, com essa persistência, os direitos das crianças? Porque não se revoltam e fazem manifestações por esta causa?
Não consigo esquecer o jovem a apanhar os restos de comida. Às vezes, imagino que encontrou pessoas que o ajudaram a mudar o seu percurso. Imagino que tem uma casa e uma família que o ama. Imagino-o a sonhar e a planear a sua vida com entusiasmo. Imagino a sua cara com um sorriso, a prosseguir o seu caminho sem a sombra da pobreza e solidão.
A Carta dos Direitos das crianças está incompleta. Acrescento:
“Todas as crianças têm direito a sonhar”.