Defendo que não existe biblioterapia sem diálogo — entre o leitor e a história que lê, ouve narrada ou vê dramatizada; do leitor consigo mesmo, num exercício de introspecção suscitado pela história; e entre o biblioterapeuta e todos os participantes no processo biblioterapêutico, para reflectir em conjunto sobre a história com a qual interagiram.
Por sua vez, o diálogo não existe sem ouvir o outro. Melhor ainda: o diálogo profícuo não existe sem ouvir com muita atenção o outro, isto é, sem escutá-lo activamente (abro um parêntesis para notar que, muitas vezes, confundimos monólogos à desgarrada com diálogos, e depois recebemos com choque a esterilidade do que, sem nos darmos conta, nunca foi um encontro). Só uma escuta activa garante diálogos eficazes; e em biblioterapia só uma escuta activa garante processos biblioterapêuticos eficazes.
No exercício da biblioterapia, o diálogo tem outra característica fundamental: constitui um espaço de respeito e de acolhimento recíprocos, onde não se fazem julgamentos, nem juízos de valor. Em biblioterapia, a relação com a dimensão emocional e psicológica das histórias é de carácter subjectivo e existencial, não havendo lugar para certos e errados no que cada um, à luz da sua experiência de vida, extrai das narrativas. Por isso, no diálogo, quando escutamos activamente os outros — as suas razões, justificações e argumentos —, acolhemos as suas inferências na mesma medida em que as nossas também serão acolhidas.
No ensaio “A Crise da Narração”, o filósofo Byung-Chul Han defende que “no meio do oceano de dados e de informação, andamos em busca de ancoradouros narrativos (…) As histórias criam laços entre as pessoas, uma vez que promovem a empatia (…) A comunidade narrativa é uma comunidade de ouvintes atentos”.[1] Em biblioterapia estes ouvintes atentos, ao aceitar as inferências dos outros (até aquelas com as quais não se identificam ou que lhes parecem absurdas), podem expor-se a revelações sobre si mesmos. O biblioterapeuta francês Marc-Alain Ouaknin defende que “devemos fazer um desvio (…) pela palavra do outro para escutar o eco das nossas próprias palavras. Não se trata da utilização do outro, mas da força do encontro e do diálogo. A narrativa do outro homem vem fracturar-me, abrir-me a outra dimensão do mundo e de mim mesmo. Encontrar a palavra do outro pode conduzir-me a mim mesmo.”[2] É assim que, por exemplo, o diálogo biblioterapêutico derruba preconceitos.
Assim, dentro desta premissa de reciprocidade, escutar activamente, basear o diálogo nesta escuta atenta e acolher as perspectivas extraídas das histórias e expressas no diálogo, constitui um exercício de encontro, empatia e humildade, um investimento na humanização, em suma, um acto de cuidado e de promoção do desenvolvimento e do bem-estar individual e colectivo — o objectivo último da biblioterapia.
Mas, em biblioterapia a que damos ouvidos ao certo?
Na interacção com as histórias, damos sobretudo ouvidos às figuras de estilo e de retórica — às alegorias, às alusões, às metáforas, às comparações, à simbologia, etc. —, que ajudam a construir imagens na nossa mente; aos espaços vazios, que colmatamos com essas imagens e com a nossa experiência de vida;[3] e ao grande número de impressões da vida que as histórias evidenciam, captam, coordenam e fixam em acontecimentos típicos ou universais.[4] É nesta escuta atenta, que temos a oportunidade de viver processos reveladores de identificação e de introspecção, com potencial transformador, apaziguador e catártico.
Já no diálogo com o outro importa sublinhar que, para além de escutamos todas as palavras ditas — o tom, o ritmo, a ênfase colocada em cada uma —, devemos também ouvir o que diz o seu corpo — o rosto, os olhos, as mãos, por exemplo. E quem se dispõe a escutar, deve fazê-lo com o corpo todo e não apenas com os ouvidos. A sua postura e expressão facial devem deixar claro que quem escuta se interessa pelo outro, interpreta correctamente, entende e aceita sem julgamentos o que está a ser partilhado.[5]
Neste domínio da escuta em biblioterapia, navegamos quase sempre num mar de subtilezas, e é de forma subtil, delicada, que o biblioterapeuta deve saber virar o seu corpo para sons por vezes quase inaudíveis. Esta capacidade para ouvir, para escutar com atenção e intenção, é uma característica imprescindível ao biblioterapeuta eficaz e é uma atitude que deve ser incentivada naqueles que participam em actividades biblioterapêuticos. É assim que a biblioterapia contribui tornar mais coeso e saudável um corpo social.
[1] Byung-Chul Han em “A Crise da Narração”, Relógio d’ Água, Portugal, 2014, ISBN 9789897834233, págs. 14-15
[2] “Bibliothérapie: Lire c’est guérir”, de Marc-Alain Ouaknin, Éditions du Seuil, França, 1994, ISBN 9782757854242, Pág. 98
[3] “Leitura e Terapia”, de Clarice Caldin, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil, 2009, Pág. 169
[4] “Elogio da Literatura”, de Northorp Frye, Edições 70, Portugal, 2022, ISBN9789724425597, pág.58
[5] “Biblio/Poetry Therapy – The Interactive Process: a handbook, de Arleen Hynes e Mary Hynes-Berry, North Star Press, EUA, 2012, ISBN 9780878394104, Pág.94