Dois caroços de maçã e duas caixas vazias - Marisa Rocha

Dois caroços de maçã e duas caixas vazias

Conheci Taiana num banco de jardim.

Quando vivia na Avenida de Roma, o tempo sobrava-me e andava grandes distâncias. Em cada passada, ao ritmo que me era mais favorável, ia observando as pessoas a correr para o trabalho e os homens a descarregar material nos cafés e pastelarias. Encantava-me com as senhoras vestidas de forma elegante e com os estudantes de mochilas às costas, acelerados em direção aos autocarros. Ria-me ainda dos piropos impróprios dos trabalhadores das obras. O tráfego era confuso àquelas horas, no entanto, para mim, cada pormenor era uma pincelada colorida na aguarela lisboeta.

Num dia de inverno vestido de sol, sentei-me, como fazia muitas vezes, num dos bancos da Alameda. Havia ali um café na esquina que tocava música caribenha, dengosa, daquela que não deixa ninguém indiferente. A melodia inundava o jardim e o pé teimava em acompanhar o ritmo. Estava embrenhada na revista de decoração “El Mueble”, comprada havia minutos no quiosque ao lado, quando, pelo rabo do olho, vislumbrei uma senhora, talvez tão nova quanto eu, aproximar-se. Apontou para o lugar vago ao meu lado e perguntou se estava livre. Baixei a revista, endireitei-me e convidei-a a sentar-se. Lembro-me ainda, perfeitamente, de como estava vestida: calças de ganga azuis, sapatilhas brancas Jan Smith e polo de mangas compridas num tom rosa-claro. À cintura trazia uma pochete preta. Carregava um saco de pano creme. Que teria lá dentro? Diria que estava vestida de uma forma fina, mas prática. Era, mesmo com aquela idade, uma senhora bonita.

— Perdão, estou interrompendo o seu sossego — comentou.

— Não, não… de forma alguma, é um gosto ter companhia. Vejo que não é daqui, desculpe a curiosidade.

— Que é isso, gente, não tem problema nenhum. Eu sou brasileira, de Brasília. Quando o tempo está bom, amo fazer caminhadas. Às vezes, me perco por aí na descoberta de ruas novas e de outros bairros, no entanto, encontro sempre uma alma gentil que me coloca de novo no caminho certo para casa. Meu nome é Taiana, qual é mesmo o nome da senhora?

— Piedade. Muito prazer! Gosto muito de passear, como a senhora. Ajuda-me a colocar os pensamentos no lugar e a apreciar as coisas boas à nossa volta. Para além de ser saudável, claro!

— Isso! É curioso, me sinto assim também — acrescenta. Com lábios finos, a sua boca rasgava-se num sorriso simpático e amigável. Os olhos cor de avelã, protegidos por pestanas naturais com um pouco de rímel, brilhavam de contentamento genuíno. Na sua cabeleira castanho-escura sobressaíam inúmeros fios de prata que brilhavam ao sol.

Iniciámos assim a nossa prosa. Sem darmos por isso, estivemos à conversa umas três horas, o dia estava convidativo e o diálogo interessante. Quando propus ir ao café buscar alguma coisa para petiscar, retirou duas caixas plásticas do saco de pano que trouxera, uma com bolinhos salgados e a outra com uma sandes cortada ao meio. Aceitei um dos bolinhos. Ao dar a primeira dentada, senti logo uma textura suave e um forte sabor a queijo, que eu adoro! Ainda quis oferecer-me metade da sandes, recusei por educação, mas para regozijo dela, aceitei uma maçã.

Taiana era viúva e tinha a companhia de Júlia, a sua empregada interna. Numa das muitas viagens à Europa, ela e o marido desfrutaram de férias em Portugal a convite de um casal de amigos. Essa estadia fizera com que os dois se enamorassem por este país e pela genuína simpatia das pessoas. Quando o marido faleceu, ela decidira que precisava de mudar de ares, recomeçar algures, e Lisboa parecera-lhe o local certo. Somou o facto de o Brasil estar a tornar-se, cada vez mais, um lugar pouco seguro para viver. Escolheu então o apartamento na zona que considerou sossegada e central, junto à Praça de Londres. Sentia-se feliz aqui. Matava as saudades por skype e whatsapp. Quando a solidão se tornava pesada viajava até São Paulo onde residia Rosemary, a sua única filha, e os netos.

A minha nova amiga crescera no interior, numa fazenda, e saiu dali para estudar Design de Interiores em Brasília. Eu, no “mato” africano me tinha criado. Mudei-me depois para Lisboa para ingressar na Universidade, num curso de línguas. Essas experiências, somadas ao facto de, enquanto crianças e adolescentes, termos brincado todo o dia fora de portas, organizado passeios de bicicleta e piqueniques com amigos e vivido em casas ajardinadas com animais de estimação, aproximaram-nos ainda mais. O que dizer das férias grandes? Até as dela eram sempre passadas na praia. Rimo-nos imenso dos episódios dos quais nos fomos recordando ao longo da conversa. As gargalhadas que dávamos quando descobríamos as coisas que em comum tínhamos pareciam de duas garotinhas saídas da primária.

Separámo-nos com a certeza de que nos quereríamos voltar a ver, e trocámos os números de telemóvel. Começámos por sair juntas uma vez por semana para caminhar. Alternávamo-nos na escolha do percurso, acabando sempre num jardim a tomar café ou a comer um gelado. De tempos a tempos almoçávamos algo leve na Versailles, pastelaria-restaurante que ela adorava e eu também.

Admirava-a pela sua juventude e garra de viver, de aprender coisas novas. Eu tinha estagnado um pouco com a reforma, faltava-me o ímpeto que ela demonstrava ter. Com o evoluir da amizade, iniciámos atividades diferentes para além das ditas caminhadas. Taiana trazia a ideia de que em Portugal não existia pobreza — mesmo sabendo que, em termos económicos, o nosso país não se podia comparar com o resto do continente europeu. Para ela, carência e miséria existiam sim no Brasil e muita, bem como nos países considerados de terceiro mundo. Levei-a, algumas vezes, a entregar comida à noite, na zona do Cais do Sodré. Isso fê-la inteirar-se da realidade portuguesa in loco, o que a tocou profundamente. “Madama Taia” foi como passou a ser conhecida. Aquele jeitinho brasileiro de falar, mais melódico e suave, conferia às conversas com os colegas e com os necessitados uma harmonia menos fria e mais entoada. Provida de uma mentalidade bem mais aberta do que a portuguesa, conseguia aligeirar e animar a vida dramática destas pessoas. Bom, falando a verdade, até a minha própria forma de ver a vida ela conseguiu mudar. Cativava qualquer um. Ela cantava e dançava — e se dançava! Dava um verdadeiro baile aos mais novos e a mim mesma, menos madura do que ela na idade, mas com dois pés pesados.

Quando nos apetecia estar com mais gente, juntávamos amigos comuns para almoçar ou jantar, ora em casa de uma, ora da outra. A nossa fama de pandilha bem-disposta e conhecedora de Lisboa fez com que a notoriedade chegasse além-mar. Passámos a funcionar como as melhores e mais profissionais guias turísticas em Lisboa — só para os seus conhecidos vindos do Brasil, claro!

Com o intuito de não nos cansarmos uma da outra, estabelecemos um acordo: deixávamos sempre pelo menos três dias livres por semana para nós próprias. Na realidade, essa até tinha sido uma imposição minha, porque eu gosto muito do meu espaço e necessitava de ter tempo para mim. Nessas alturas, eu ia ao cinema, ao cabeleireiro, saía com outros amigos. Deslocava-me a um centro comercial às compras ou simplesmente ficava em casa a ler, escrever e ouvir um pouco de música, na companhia da minha cadela Kyra.

No final do verão, notei Taiana demasiado nervosa, aprimorava-se ainda mais quando saíamos, mas não consegui que se abrisse comigo. A empregada, embora a achasse estranha, não dera por nada de importante, a não ser os muitos telefonemas que passara a receber. Indaguei-me logo se alguém estaria a tentar aproveitar-se da sua bondade. Nessa altura, a minha companheira faltou igualmente aos nossos encontros semanais, o que me deixou ainda mais apreensiva. Para além de ser muito raro, quando não podia, avisava sempre. Deixei passar uns dias e recebi um telefonema aflito de Júlia confirmando que a patroa não tinha ido para casa nessa noite.  O meu coração alvoraçou-se.

Senti alguém tocar-me no braço e uma onda de calor invadiu-me a cara. Duas moças olhavam atónitas para mim:

— A senhora sente-se bem? Deve ter adormecido, olhe que o sol de inverno não é muito bom sem chapéu. — Nem consegui balbuciar nada, tentei desentortar-me deixando cair a revista e experimentei o corpo dormente.

— Eu dormitava? — perguntei muito espantada. Riram-se às gargalhadas.

— Olhe que até ressonava e murmurava qualquer coisa impercetível. Parecia muito agitada — adiantou uma delas.

Ao tentar levantar-me, olhei para o lado e vi, no chão, encostado ao banco, um saco de pano. Deslizei de volta ao assento, tremendo. Puxei o saco na minha direção, abri-o e lá dentro encontrei duas caixas plásticas vazias e caroços de maçãs embrulhados em guardanapos.

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AUTOR(A)
Marisa Rocha
Marisa Rocha

Marisa Caseiro Rocha nasceu em Moçambique, em 1958.

Interrompeu o curso de Ciências da Educação na Universidade Eduardo Mondlane, para seguir o seu sonho de viajar. Viveu em vários países europeus e na Austrália. Nos últimos trinta anos fez do Algarve a sua casa, usufruindo do sossego, das paisagens únicas e do clima ameno.

Passou por várias experiências profissionais: bancária, assistente de bordo, secretária de direção, office manager, entre outras.

Para além do seu gosto pelas viagens, encontra agora mais tempo para se dedicar ao que lhe dá igualmente prazer, a leitura e a escrita. Adora caminhadas, passeios de bicicleta e aulas de zumba, fitness e a companhia dos seus cães. Participa nalgumas ações de voluntariado.

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