Da próxima vez que decidir pôr fim à vida, será, com certeza, num dia ensolarado
Maria João Amaral Graça
Um pensamento que verbalizo, a cada hora que passo nesta terra inóspita, onde o sol se recusa a entrar. Deambulo por vales rochosos, mais viva do que morta, pois a verdade é que não morri no dia 19 de julho de 1926, só mudei de endereço. O frio que faz aqui é intenso, e só chove em cima de mim, até posso adivinhar porquê. Deito-me no chão lamacento, contorcendo-me com dores insuportáveis que enlouquecem o meu corpo lesionado e penso, conformada: “Que a purga comece”.
Seres desprezíveis movem-se de forma sinistra à volta, julgando-me como carrascos impiedosos: “Arderás eternamente no Inferno” disse um deles, com uma gargalhada cavernosa, enquanto um outro sussurrou no meu ouvido: “A tua filha odeia-te”. Proferem palavras cruéis, enquanto me puxam a roupa, os cabelos, e quase me afogam na lama fedorenta. Tento empurrá-los com as mãos fraturadas, mas parecem vermes pegajosos que se colam à pele. Carregam nos ombros os pecados que os condenaram, trazendo estampado no rosto o sofrimento que causaram em vida. Aqui, há de tudo: depravados, pedófilos, violadores, fumadores, alcoólicos, assassinos e aqueles que, tal como eu, foram incapazes de combater a angústia dilacerante que os consumia. Fomos todos habilmente levados a escolher o lado errado, supondo que este era o lado certo. Acabámos todos enganados pelas nossas mentes impostoras.
Entrego-me nas mãos de Deus, suplicando-Lhe que me conforte e, quem sabe, um dia, me perdoe. O meu único desejo é que alguém se lembre de me procurar neste fim de mundo. As pessoas esquecem facilmente quem nunca amaram de verdade, e eu sempre fui privada do alimento essencial à vida, o amor. Grávida aos vinte e um anos, procurei consolo nos braços da minha mãe, contudo, somente encontrei olhares de desprezo e vergonha, como se fosse uma espécie de aberração. Já a minha tia, rogava a Deus pela minha morte, sempre que via o marido entrar no meu quarto. Quanto ao meu irmão, afogava as mágoas de bar em bar, pela noite fora, para evitar os gemidos selvagens do tio, que faziam tremer as paredes da casa. Aposto que suspiraram de alívio quando me viram deitada no caixão. Mas querem realmente saber o aflitivo da vida além-túmulo? Muito pior do que ser humilhada, agredida e violentada por almas errantes, é viver a mesma coisa, sentir a mesma dor, vezes e vezes sem conta, como se estivesse num círculo vicioso, sem portas nem janelas de emergência. Por falar nisso, aqui vou eu novamente.
Reconheço o papel de parede azul-bebé que escolhi com tanto amor para o seu quarto, e que outrora, foi o meu. Ingenuamente, pensei que bastaria mudar-lhe a cor para apagar as lembranças de uma adolescência dolorosa. Porém, quem as tatuou a ferro em brasa na minha alma certificou-se de que jamais sairiam. Por amor, assegurei-me de que não encostava a sua flácida barriga em mais ninguém da família, nem enfiava aquela língua nojenta em mais nenhuma boca que tivesse menos de 18 anos.
Pendurada no berço estava a mantinha cor-de-rosa, onde podia ler o seu nome bordado no tecido, “Pilar”, e que ainda tinha o seu cheiro. Apertei-a contra o rosto ensanguentado, pensando onde estaria ela, se já teria encontrado uma família, e se lhe diriam o quanto a mãe a amava, quando crescesse. Como eu gostaria que soubesse que a deixei à porta de um orfanato, para ser feliz.
Olhei para a janela embaciada, intimada pela chuva torrencial que fustigava o negrume do céu. Abri-a lentamente e olhei para baixo, com a mente vazia e a alma dilacerada. Ouvia as batidas frenéticas do meu coração, enquanto me debruçava sobre o parapeito, tentando ignorar o pavor que sempre tive a alturas, antes que me arrependesse. Fechei os olhos e saltei para o incerto, impelida para o chão a uma velocidade abrupta, certa de que doze andares seriam suficientes para pôr fim a doze anos de amargura.
Ignorantes os que acham que esta é a solução para alcançarem a liberdade tão almejada. Estou novamente neste abismo de solidão, tentando livrar-me dos vermes hediondos que sobem pelo meu corpo deformado. Afasto-me para refletir, e vejo duas silhuetas brilhantes a caminhar na minha direção, cuja bondade que emanam me enche de esperança.
— Ouvimos o teu chamado. — disse um homem alto, que trazia um jarro na mão. — Tens sede? Bebe um pouco de água.
— Mas sou uma pecadora — respondi, surpresa com a sua amabilidade — e tenho de pagar pelos meus atos terríveis.
— Deves estar gelada. Vem aquecer-te — uma jovem mulher, de rosto angelical, aproximou-se e cobriu-me as costas com uma manta perfumada.
A extrema compaixão de Miguel e Lúcia, os meus anjos salvadores, deixou-me altamente fragilizada, caindo de joelhos aos seus pés, num pranto amargo e sincero. Passados alguns minutos, sequei as lágrimas e perguntei:
— Que lugar horrível é este, onde todos escarnecem dos outros? Já basta ter de suportar o peso da consciência, que constantemente me condena.
— É o Vale dos Suicidas — esclareceu Lúcia. — Tal como tu, também eles procuraram fugir dos problemas, mas nem todos se envergonham ou mostram o mesmo grau de arrependimento.
— Quando percebi que não tinha motivos suficientes para desistir já era tarde demais — lamentei, verdadeiramente arrependida.
Miguel e Lúcia convenceram-me a deixar para trás a escuridão e a esquecer a chuva e o frio, apesar da minha resistência. Fui levada para uma espécie de posto de socorro, onde me limparam as feridas, me alimentaram e conversaram comigo, aconselhando-me a aceitar o meu destino, sem mágoa nem rancor. Deitei-me numa cama limpa e fechei os olhos, porém os meus pensamentos sofriam com o peso dos remorsos.
Dormi durante horas seguidas, um sono agitado. Sonhei que tinha ido ao encontro de Pilar, e quando a vi, imediatamente me arrependi de não ter feito parte da sua vida, desde o início. Poderia dizer que Deus assim não quis, todavia estaria a enganar-me a mim própria, pois recusei enfrentar o monstro que diariamente me trucidava, aterrorizada com a punição. Acordei sem saber onde estava, com a alma encharcada de vergonha e culpa.
— Devo regressar à lama — comuniquei a minha decisão a Miguel, que me olhou complacente, como se lesse os meus pensamentos.
— O amor de Deus pelos seus filhos é infinito. Quem se arrepende sinceramente não será abandonado, mas sim auxiliado.
Aquelas palavras surtiram em mim um efeito inesperado. A habitual sensação de medo e insegurança desapareceu, dando lugar a um sentimento leve e tranquilo. A Maria João, que um dia escolheu o lado errado da vida, sabia que, ao abandonar o inferno onde acordou, estaria a escolher o lado certo da morte. Viva ou morta, o importante era decidir-me pelo lado certo.
Com a confiança a circular-me nas veias, segui viagem rumo a uma casa de saúde. O Hospital de Santa Maria estava protegido por um muro tão alto que quase batia no céu azul, ornado com rosas trepadeiras, das quais exalava um aroma adocicado, muito agradável. Aí, eram tratados os doentes que sofriam do mesmo mal que eu: biofobia, ou por outras palavras, medo da vida. Passei bastante tempo nesse lugar maravilhoso, onde melhorei das feridas do corpo físico infligidas pela minha ignorância, todavia as cicatrizes mentais e morais teriam de ser curadas de outra maneira.
— O teu pedido foi autorizado. Brevemente regressarás à base — anunciou Miguel, com um sorriso no rosto.
Os meus olhos brilharam de felicidade ao ouvir a boa nova. Finalmente, poderia expiar as minhas faltas, as minhas falhas, enfrentar os meus medos e enfrentar os inimigos, porque quem deixa pendências, mais cedo ou mais tarde, terá de as concluir. E eu estava preparada para renascer no dia vinte e um de junho de 1953.
Abro com dificuldade os olhos, encadeados pela luz intensa que existe ao meu redor, e vejo diante de mim um rosto, que embora desconhecido, me lembra alguém especial. Não necessitei de muito tempo para descobrir quem era…
Outrora, a minha amada Pilar.
Agora, a minha querida mãe.