Quando soube qual seria o tema desta edição da Palavrar, percebi imediatamente: escrever é o oposto de ter paz.
É impossível viver em paz quando temos milhares de personagens a cirandar dentro de nós. É impossível ter paz quando as histórias imploram por ser contadas, quando a urgência de bater com os dedos nas teclas nos levanta da cama a desoras e nos obriga a abrir as comportas para deixar fluir os enredos.
A paz é um nirvana inalcançável para quem escreve. Ou quase, vá.
O frémito começa quando uma personagem se apresenta, saída de nenhures, e, de repente, vive connosco. Acompanha-nos ao café, espreita-nos por cima do ombro, debruçada sobre os livros que estamos a ler, senta-se connosco à secretária de trabalho, ocupa um lugar nas reuniões que possamos ter, divide connosco a almofada, impedindo-nos de adormecer rápida e placidamente. Aquela personagem, até há pouco inexistente, instala-se e mói-nos os ossos até que a tiremos da vida imaginada e a tornemos real escrevendo-a. E nem assim ela nos dá tréguas. Dependendo do processo, acompanha-nos durante dias, meses, anos, enquanto a moldamos, lhe damos vida e a tornamos tão real quanto possível. Depois, ousada, continua a importunar-nos porque continuaremos a lembrar-nos dela mesmo que já viva nas páginas de um livro, no ecrã de um cinema ou em qualquer outro lugar palpável.
Depois, tendo a personagem já ganhado vida própria, o descanso teima em não chegar. A paz continua distante, a miragem ao longe, num deserto demasiado árido. Imaginando que a personagem se tornou livro, a ausência de paz segue na ansiedade pela publicação. Durante o processo de edição, a coisa mais remota ao escritor é a sensação de paz, de trabalho concluído: é preciso cortar texto, reescrevê-lo, corrigi-lo, limpá-lo, despojá-lo de artifícios ou embelezá-lo.
O texto está pronto, o manuscrito está entregue, a publicação está iminente. Podemos descansar. Era bom, mas não. Ainda não é aqui que o escritor atinge aquele estado prazeroso que nos leva à paz. Porque, a seguir, há a angústia da receção que o livro vai ter pelo público. E a personagem, teoricamente já sossegada no canto dela, nas dezenas ou centenas de páginas que lhe demos para habitar, volta a vir dormir connosco, importunando-nos com a incerteza: será que as pessoas vão gostar do que escrevemos? Será que o livro funciona? Será que a história está no ponto que imaginámos? Será que demos uma vida digna àquela personagem e às outras que a acompanham?
A dada altura, o escritor acabará por acalmar. O tempo passa e vai diluindo esta ansiedade corrosiva. E é nesse momento, quando a paz já é um vislumbre mais próximo, que outra personagem, outro enredo, outra história se acercam do escritor e lhe saltam para o ombro, tornando-se a sombra com que ele terá de viver durante dias, meses, anos, até que o processo se repita e regresse à vida do escritor aquele estado que é em tudo o oposto da paz.
A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.