Escritores e páginas em branco: uma certeza, uma inevitabilidade e um cliché

Escritores e páginas em branco: uma certeza, uma inevitabilidade e um cliché

Deparo-me poucas vezes com a página em branco, incapaz de lhe pespegar palavras que sejam sumarentas e que construam narrativas diferenciadoras. E isto acontece pouco porque poucas vezes me sujeito à dor de me sentar a escrever sem saber ainda o que estou ali a fazer. Na maioria das vezes, quando abro um documento em branco, já sei como vou começar o texto. Porque me surgiu uma frase, uma situação, uma ideia qualquer que dá o mote a tudo o que vem a seguir. Exactamente como aconteceu agora, quando me sentei a escrever este texto.

 

A minha angústia vem antes disto. É nos momentos em que ainda não sei sobre o que quero escrever, que história quero contar, que o meu coração se aperta e as incertezas se instalam. É neste momento, antes da ideia, que tenho a minha página em branco. Assim que encontro a voz que vai contar a história, a personagem que a preencherá, o conflito que quero expor ou o final a que quero chegar, a angústia apazigua-se. Por vezes, regressa mais tarde, quando me deparo com um beco que criei, ou com um problema com o qual não tinha contado antecipadamente. É nestes momentos que paro, releio e, muitas vezes, me socorro de uma técnica para mim bastante eficaz: post-its e setas. Esquematizo muito, gosto de ver os textos de fora, de olhar para eles vendo a “big picture”, a sua amplitude máxima. E, mesmo assim, sou surpreendida inúmeras vezes.

 

Sou das que prefere escrever embalada pela inspiração, confesso. Escrever para cumprir um calendário é-me doloroso e deixa-me inúmeras vezes com a sensação de que escrevi de forma leviana. Por muito que o resultado me agrade, saber que escrevi impulsionada por um prazo ou uma qualquer obrigatoriedade tira um bocadinho do encanto que a escrita tem para mim. Acontece que, para quem escreve profissionalmente, a escrita nem sempre resulta de um rasgo de génio que aparece de forma impetuosa; muitas vezes, é apenas o que acontece quando se tem uma tarefa para cumprir.


Agora, enquanto escrevia este texto, surgiu-me a pergunta: tenho medo de um dia a página em branco ser extensa a ponto de me deixar sem histórias para contar?

 

A resposta é não. Não tenho medo de ficar sem histórias porque tudo é passível de ser contado. Já todos lemos livros que contam histórias parecidas, mas a voz do autor, a sua forma de escrever, são coisas únicas. E é por saber que terei sempre a minha perspectiva única sobre o que conto que não me assusta a ideia de poder vir a ficar sem coisas para contar. Em vez disso, olho para a página em branco como lugar de infinitas possibilidades: se, naquela página, nada está escrito, posso escrever o que eu quiser, seguir os caminhos que me apetecer, criar as personagens que me fizerem sentido e inventar conflitos, mágoas e passados de milhares de formas diferentes. Por isso, prefiro olhar para a página em branco como um desafio e não como um carrasco. Mas nem sempre é fácil escrever a primeira frase. Nem sempre é fácil ter a disciplina necessária para encher páginas e páginas de vidas que não existem.


Não tenho regras nem rituais de escrita. Não escrevo todos os dias, não tenho uma hora perfeita para escrever, nunca me imponho um número mínimo de palavras. Mas devia! Por isso, para 2022, o meu auto-desafio é esse: ser uma escritora organizada, que não se desvia do caminho que precisa de percorrer, que não se distrai do objectivo. E o meu objectivo é simples: escrever o meu segundo romance. E, sim, já tive momentos de página em branco com ele. Mas também já tive texto a escorrer-me pelos dedos, de forma completamente desregrada a ponto de, chegada ao final daquele trecho, ter olhado para ele e, meio estarrecida, ter exclamado um “não sei como é que isto aconteceu aqui!”.

Portanto, para este ano que agora começa, espero que a página em branco seja sempre sinónimo de inúmeras portas abertas e nunca de falta de ideias. Ou de medo. Acima de tudo, que nunca seja sinónimo de medo. Porque, entre os milhões de palavras que existem, há sempre algumas que nos salvam. Que sejam essas que vamos escrever, então.

A pedido da Autora, este texto não segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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AUTOR(A)
Lénia Rufino

Lénia Rufino nasceu em 1979, em Lisboa. Cresceu nos subúrbios, rodeada de livros. Estudou Publicidade e Marketing, mas devia ter estudado Psicologia Criminal, a sua grande paixão a par da escrita. Aos dez anos escreveu o seu primeiro conto e decidiu que, um dia, haveria de ser escritora. Demorou trinta e dois anos a conseguir.
Publicou vários contos no DNJovem e lamenta a extinção desta plataforma de divulgação de novos talentos. É autora de blogues desde 2003. Atualmente, colabora com o Repórter Sombra (www.reportersombra.com), onde publica contos mensalmente. O Lugar das Árvores Tristes é o seu primeiro romance.

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