Estava magra e a pele que formava os seios pendia, seca. Era pele a mais.
Encostada aos destroços de casa, mantinha-se quieta. O movimento ainda lhe obedecia, e o controlo que estar quieta lhe permitia era essencial. Controlar alguma coisa. Depois, se não se mexesse, não doía.
Estava marcada. Os pedaços de si que os olhos alcançavam estavam marcados. Arranhões, cortes, nódoas negras. Nada que mate, mas marca. Havia mais, sentia-as, sentira-as enquanto lhas infligiam.
Sabia que não havia regras. Há muito tempo que não existiam regras, e os homens, e as mulheres, faziam o que queriam. Não havia regras e faziam o que podiam para viver. Faziam o que podiam para sobreviver.
Sobreviver sob o limite de humanidade, abaixo do limiar que nos permite erguer, aproxima-nos dos animais. Sobreviver por muito tempo aproxima-nos das bestas. E não há regras, sobrevive-se e a besta que nos habita desde tempos imemoriais ergue-se.
Homens e mulheres faziam o que queriam. Entravam em portas que não eram suas e roubavam. Na necessidade por abrigo ou alimento, batiam. Na necessidade batiam… e matavam. Isso dependia da necessidade. A sobrevivência permite que a besta dentro dos homens se erga e a besta tem gosto pela dor, pelo medo.
Na necessidade, violam. Corpo e alma.
Sentira enquanto lhe infligiam dor. Rasgavam carne, rasgaram alma, e fizeram do seu corpo um saco. Fizeram do seu corpo um saco onde despejaram a raiva das bestas que eram, e ali ficou, com tudo o resto que sobrou, que não era nada. Porque o que de si sobrou não era nada.
Mantinha-se quieta. Sabia que quieta menos lhe doía. Sabia que quieta menos sentia, mas sentia que estar quieta era vontade sua. Vontade torna-se realidade, diria a mãe. Diria, porque à mãe levaram-lhe a vontade. A vontade e a vida. Levaram-lhe a mãe e o pai. Levaram-lhe a mãe e o pai e a aldeia onde viviam foi queimada. Vieram as bestas que sobreviviam e queimaram a aldeia de seus pais e mataram quase sessenta pessoas, porque a sobrevivência das bestas ditava que os outros não existissem.
Era assim simples: eu e o outro equivalia a eu ou o outro. Na escolha, pouca escolha havia. Sobreviver respondia ao dilema, sem que houvesse necessidade de ativos raciocínios que enfraquecessem a chance de viver. Viver em vez do outro. Porque era eu ou o outro. E o outro tinha de morrer.
Mataram sessenta pessoas e queimaram a aldeia e ficou sem pais e sem família, porque a sua família era aquela aldeia. E agora, magra, seca, violada e cheia do ódio de outros, deixava-se estar quieta. Estava quieta há muito tempo, perdeu a conta. Contar o tempo deixou de fazer sentido quando as regras desapareceram. Perdeu a conta ao tempo e nem tinha bem a certeza se o tempo passava. Nem tinha bem a certeza se o tempo mudava. Perdeu a conta. Mas estava quieta.
Não tinha fome. Já não sentia sede. Estava cansada. Decidiu mover-se. Moveu-se o suficiente para se deitar. Moveu-se o suficiente para se deitar e deitou-se de lado. Deitou-se entre os cacos, entre os pedaços de tudo o que as bestas partiram. Puxou ao peito os joelhos e deitou-se consigo mesma, com a dor e as feridas e os pedaços que as bestas deixaram espalhados.
Deitou-se e ficou quieta, muito quieta. Porque podia não se mover, escolhia não se mover. Deitou-se quieta e esperou. Esperar era também decisão sua, e ela podia decidir. Decidir era controlo. Quando as bestas imperavam, tomavam, magoavam e matavam, ela ainda podia decidir. Decidiu deitar-se. Decidiu ficar quieta e decidiu esperar.
A espera. Não sabia dizer se era longa ou curta, porque havia perdido conta ao tempo. Era espera e estava quieta enquanto esperava. Ouvia, ainda. Não via, pois decidira fechar os olhos, mas ainda ouvia. Os sons surdos da madeira do chão, que estalava e cedia sob o peso do seu corpo. Ouvia as palavras que passavam pela sua porta, ríspidas ou sussurradas na pressa de não serem notadas. E das janelas chegava a sonoridade do caos: gritos de dor, palavras de ordem, sirenes de auxílio ou de confinamento. O que ouvia perdia sentido na quietude a que se impusera, tão quieta que deixara de se sentir. Sentia-se levitar e o som em seu redor ondulava, distorcido.
Adormecera. Percebeu que adormecera quando despertou, quando sentiu crescer a consciência do chão duro onde se deitava, dos brados por justiça que anunciavam uma multidão lá fora, do vazio caótico que as bestas deixaram para trás.
Quieta, adormecera. E, agora que acordava, desejava voltar a adormecer. Dormir era-lhe favorável. Dormir permitia-lhe esperar sem esperar propositadamente. Dormir permitia-lhe deixar o tempo escorrer, o tempo que já não contava, mas que imaginava ainda existir. O tempo que existia e que passava, mas demorava a passar e dormir ajudava a que passasse mais depressa. Queria dormir, pelo que não abriu os olhos.
Não abriu os olhos e decidiu não ouvir, esforçou-se por não sentir e, ferreamente, manteve-se quieta. À consciência da multidão que se reunia no exterior disse: «Não são nada, não é nada, nada se passa. Não sou nada. Deixa-te estar aqui, deixa-te estar fechada aqui, deitada aqui.»
À consciência disse que ficasse quieta. E a quietude ondulava, oscilava entre o material que a rodeava, e o nada que a preenchia. O nada era silencioso, cheio da mesma dor que sentia no corpo, mas vazio de gente, vazio de bestas, vazio de pais mortos e aldeias queimadas, e de regras que não existiam. O nada doía, mas era vazio. E o vazio parecia-lhe muito bem.
Quieta, deitada no chão entre estilhaços, à margem de uma multidão que crescia e gritava, decidiu não existir.