Trago-vos um conto em que pensar. Uma contenda familiar onde há inocentes, juízes e réus.
Era o início da vida a dois, a festa de casamento. A noiva era uma morena sorridente, exultante e muito simples. Usava um vestido branco com margaridas no decote. O noivo era um magricela de cabelo negro e comprido, sempre desgrenhado, por ser difícil pentear. Garboso, trajava um fato preto com abas de grilo e ostentava um laço cinzento igual ao colete.
Os dois tinham emprego e a vida sorria-lhes. Chegara a hora de constituir família. O primogénito foi Ricardo, que seria também o primeiro neto. Com cinco anos de diferença nasceu a Magda. As avós eram modernas, vaidosas, remoçadas e sentiam-se abençoadas com o casal de netos. Estavam prontas para ajudar no que fosse preciso. Para as crianças era o tempo de brincar e de fazer traquinices, de usar a doçura e abusar das vontades e mimos das avós, com quem ficavam quando os pais saíam, ou estavam doentes. Magda tinha já sete anos e o irmão doze. Eram duas crianças regadas com amor, tais como as flores em botão, e não podiam imaginar o que o futuro lhes estava a urdir.
A vida do casal corria veloz, sem terem tempo de se olhar e dialogar. O emprego, cuidar dos filhos e a gestão da casa ocupava-os. Era o início dos blogues. À noite, como a conversa era escassa, ambos seguiam um deles. Blogue escrito por uma senhora que ensinava como era fácil viver em harmonia e gerir o tempo, entre muitas palavras bem alinhadas. Muito aliciante para quem tinha problemas. Em pouco tempo, o amor, a partilha e o respeito ruíram como bolas de sabão. O casamento, suspenso numa corda bamba, perdeu o equilíbrio e desandou. O silêncio entre os dois e as discussões constantes era um forte indício para a derrocada do casamento.
Uma manhã, o homem que havia escolhido para marido e pai dos seus filhos, disse-lhe de supetão, que ia sair da vida dela. A mãe dos meninos ficou desolada, sem perceber a causa daquela atitude e das guerras quase diárias, nos últimos anos.
— O que se passa nas nossas vidas? — perguntava.
— Sei que preciso de tempo. Já não sinto a paixão e a serenidade dos primeiros anos de casamento, quando estamos juntos — era o que ele respondia.
— E os nossos filhos?
— Estaremos separados, mas dos nossos filhos nunca. Serei sempre o pai e tu serás a mãe.
E assim se deu a separação. Ficou, entre os dois, decidido que os meninos ficariam com a mãe, com visitas regulares ao pai e divisão de despesas. Logo que este pudesse, a guarda dos filhos seria partilhada. Mas ele nada cumpriu e, depois do divórcio, não apareceu durante um ano e meio. Nesse interregno, ela foi ajudada pelas avós, tentando fazer o papel dos dois, mas Ricardo e Magda estavam carentes do pai…até que um dia a Magda:
— Mãe, mãe, o pai quer vir buscar-nos. Vamos ter um mano! —a mãe, como era uma pessoa bem formada e os amava, não se opôs.
Começaram a ir para a casa da nova família, em fins de semana alternados. O Ricardo, quando voltava, era insolente para a mãe, recusava ir a casa da avó materna e nem queria conviver com os tios. A Magda continuava a ser uma menina carinhosa, mas calada. Passaram-se alguns meses nessa rotina. O Ricardo fez-se irreconhecível, com treze anos não parecia o mesmo e, para a mãe, dizia:
— Tu não vales nada, já não preciso de ti. Eu tenho uma nova mãe, que cuida de mim.
Chegada a época natalícia, combinaram passar a véspera de Natal com a nova família. O almoço de Natal seria, como era habitual, na casa da família materna. Na árvore de Natal brilhavam bolas coloridas, libras e miniaturas de chocolate, alusivas à data. O chão não se via, tantas eram as prendas para os meninos.
— Filha, estão atrasados com os miúdos — observava a avó.
— Temos de ter paciência, mãe — tentava acalmar a família.
Poucos minutos depois, o telefone toca:
— Os meninos não querem passar o dia de Natal convosco. Ficam cá — e o pai desliga o telefone sem uma desculpa, uma explicação.
Foi o pior Natal das suas vidas. Natal sem os filhos e netos? Ficaram em pânico, a lamentar o sucedido. Uma mágoa difícil de ultrapassar. Mas o pior estava para vir.
Não houve Natal nem Ano Novo. Na casa do pai, nunca mais atenderam o telefone. De tudo tentaram, para o contactar, mas sem êxito.
No primeiro dia de aulas, a mãe, desolada e decidida, foi buscar o Ricardo à escola. Quando chegou, já o pai e a madrasta estavam a entrar no carro, levando-lhe o filho. Puseram-se em fuga, sem palavras nem explicações. Entretanto, a avó materna foi a outra escola buscar a Magda que, amorosamente, veio para a casa da mãe.
Nas férias de Páscoa que se seguiram, a Magda foi convidada a passar uns dias na casa do pai e da sua família. Magda estava entusiasmada por ver os irmãos. Despediu-se da mãe com beijos e abraços e seguiu com o pai. Deixou um recado colado no frigorífico da avó:
— Adoro-te, avó. Obrigada pela notinha que me deste para comprar gelados.
Durante as férias toda a família paterna ficou incontactável. Ninguém atendeu as várias chamadas da mãe, ninguém telefonou. No domingo de Páscoa, esperava-se pela Magda quando, finalmente, chegaram notícias:
— A Magda quer viver connosco. Os dois não te querem ver, nunca mais.
Telegrama falado, bala fulminante no coração de mãe. Deixou de gostar de tudo e de todos. O sono abandonou-a e a depressão assolou a mulher e mãe, órfã dos dois filhos. Tinha dificuldade em aceitar tamanho infortúnio. Estava morta, mas cheia de vida. Não podia acreditar. A vida sem os filhos não tinha mais sentido.
O trabalho foi o refúgio do desalento. Entretanto, fez todas as diligências para recuperar o seu maior bem, mas sem êxito. Quando queria ver os filhos era enxotada como uma pessoa de mau caráter. Para sossegar o espírito amarfanhado ia espreitar à porta da escola, para os ver, com os olhos embaciados, sulcados de lágrimas. Enviava-lhes prendas, que comprava muitas vezes, cujos sacos pendurava na porta onde viviam Nunca obteve resposta, não sabendo se os recebiam ou não.
Foi uma saga constante, uma luta sem tréguas. A justiça não atuou, nunca se fez, os juízes, as assistentes sociais e os advogados foram ineficazes. Inquirido no tribunal o rapaz:
— Não quero viver com a minha mãe.
E assim decidiam tudo “a bem da criança”.
Depois de muitas sentenças e tentativas no tribunal, aquela mãe não conseguiu provar a manipulação, o apagar das memórias das crianças. Seriam gente crescida com a lacuna dos afetos, dos valores, e da convivência com a mãe.
A vida continuava com a esperança de um dia juntar a si os pedaços do seu ser, o que tardava. Vivia numa pitoresca rua, no bairro de Benfica, em Lisboa e, uma tarde ao chegar a casa, reparou num grupo plantado à sua porta. Quando se aproximou viu que se tratava do Ricardo e da Magda e todo o restante rancho. Estariam ali por acaso ou o que se passaria? Nem em sonhos adivinhava o motivo daquela reunião.
Ao chegar à porta, cumprimenta:
— Boa tarde — e a madrasta dirige-se-lhe com a Magda pelo braço:
— A Magda está muito rebelde, incompatibilizou-se connosco, e quer viver consigo.
— Claro! — disse, quase sem fôlego.
O coração batia forte, não cabia no peito de exultação. Abraçou a filha, ria e chorava. O Ricardo deu-lhe um beijo mudo, e foi para perto do pai.
Via-se um choro lavado.
No místico e belo olhar,
naquele rosto estampado
O riso estava a chorar.
Magda trazia na mão um saco de plástico, com algumas roupas… Em plena época de aulas, não trazia livros. Tinha então catorze anos.
Hoje é uma adolescente de dezoito anos. É simpática e morena como a mãe. Tem gosto próprio, que tem mudado à medida que a idade cresce com ela. Gostou de andar de skate, bicicleta e recentemente começou a tirar a carta de condução. Tem mágoas e traumas que tenta debelar aos poucos. Compensa com atitude pró-ativa, a ausência na casa e a perda naqueles anos do amor da mãe. Frequenta o primeiro ano da faculdade na área de Psicologia e adora o curso que escolheu. Tem a firme esperança de, através dele, obter ajuda para compreender a maneira de agir de algumas pessoas em relação aos outros, quando é suposto quererem-se bem.
A história desta família ficou coxa, desfeita, de coração amputado, porque houve de permeio, outra pessoa. Como pode alguém propagar que é fácil ser feliz, quando esse alguém foi a causadora do padecimento do outro? Como pode uma mãe colaborar na destruição de outra, ferindo-a com lâminas de dois gumes?