Étonnants Voyageurs

«Étonnants Voyageurs» – Em memória de Michel Le Bris

   Há uns anos, num passeio pela costa da Bretanha, dei comigo na baía de Morlaix (Finisterra), em Trostériou, com o olhar perdido entre enseadas e ilhotas, navegando à vista numa mistura de terra e água, junto a uma casa de pescador envolta num manto de hortênsias azuis, a meio caminho entre quintas e a orla marítima de Térénez, um pequeno porto de pesca, viveiros de ostras… Porque a maré estava baixa era visível a faixa de areia que liga o continente à ilha de Stérec.

   Não sabia eu, na altura, que aquela mistura de terra e água guardava o segredo dos sonhos de Michel Le Bris, que nascera e fora criado naquela casa envolta em hortênsias donde se avistava a ilha de Stérec, o pequeno mundo para onde, em criança, aproveitando a maré baixa que deixava aberto o caminho de areia até à ilha, se escapava, e uma vez lá se imaginava Stevenson na Ilha do Tesouro.

   Tivesse eu sabido que aquele era o território de infância de Michel Le Bris, e talvez, à tardinha, naquele restaurante no pequeno porto de Térénez, eu me tivesse imaginado à mesa com ele diante daquela travessa de ostras, ameijoas, navalheiras e lagostins que me puseram na mesa e o escutasse dizendo-me: “Passei toda a minha infância na baía de Morlaix, [aqui neste] porto de Plougasnou, [onde] tanto sonhei com o mundo. O oceano, essa força poderosa é a grande paixão da minha vida. [Aqui], neste lugar onde a terra e o mar se mordem, o oceano é a minha respiração.”

   E Michel Le Bris ter-me-ia ainda falado do apelo eterno da sua Bretanha natal, em particular da baía de Morlaix, e também do apelo nómada que o tornou um “étonnant voyageur” (“espantoso viajante”), seguindo o rasto de Robert Louis Stevenson, Jack London e dos exploradores de ouro numa viagem de três meses pela América.

   Ter-me-ia certamente falado das suas inesgotáveis paixões de estudo: o romantismo alemão e Robert Louis Stevenson. E com ele eu teria viajado à volta de uma mesa. Tal como viajaram com ele todos aqueles que durante trinta anos tiveram o privilégio de assistir à sua maior e eterna viagem, o Festival “Étonnants Voyageurs” (“Espantosos Viajantes”) que fundou com o escritor marselhês Jean Claude Izzo, em 1990, em Saint Malo, e que este ano, entre 4 e 6 de junho terá a sua 32ª edição.

   Michel Le Bris (1944-2020) – com quem não cheguei a sentar-me à mesa naquele restaurante à flor da água na baía de Morlaix – jornalista, produtor, editor, estudioso de Louis Robert Stevenson e do romantismo alemão, apaixonado por histórias de piratas e por livros de aventuras, e ele próprio escritor de livros de viagens, já cá não está, mas o seu legado permanece vivo em Saint-Malo “chamando a si todos os filhos de Stevenson e de Conrad de todo o mundo”.

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AUTOR(A)
João Ventura
João Ventura

Fui durante largos anos professor de língua e literatura portuguesas, e durante três anos, de cultura portuguesa na Sorbonne, em Paris. Também lecionei na Universidade do Algarve cadeiras de gestão cultural e exerci o cargo de Diretor Regional de Cultura do Algarve. Fui bibliotecário. E fui diretor do TEMPO.

Como professor, bibliotecário ou gestor e programador cultural, a crónica da minha trajetória profissional tem duas marcas que a definem: a opção pelo sector público e pela criatividade. Por isso, a minha formação e aprendizagem nunca a dou por concluída, seja regressando uma e outra vez aos bancos da universidade seja através da leitura e das viagens que são outras duas marcas da crónica da minha aventura pessoal.

Gosto de ler, escrever e viajar. E estas três atividades furtivas ligam-se entre si. Umas vezes, leio e viajo para escrever. Outras vezes, leio e escrevo para viajar em seguida aos lugares que antecipei em crónicas de viagem inventadas. Destas deambulações, umas vezes literárias, outras geográficas, fui deixando rastos no papel. Na revista Atlântica, cujo projeto editorial criei e da qual fui diretor, e nos blogues O que cai dos dias, O leitor sem qualidades e, agora no blogue nómada Fora daqui.

Gosto de me ver como um criador de projetos culturais, alguém que faz acontecer ideias seja na vida profissional seja na vida privada. Atualmente, trabalho na Biblioteca Municipal de Portimão, desenvolvendo ideias e projetos de divulgação do livro e da leitura. E tenho em mãos, a escrita de um livro de crónicas de viagens literárias. Também gosto de cozinhar.

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