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Mário Rufino
Mário Rufino

Falemos de Monstros

O tempo tem feito uma carnificina. Ídolos caem à velocidade imposta pela tecnologia. As redes sociais são catalisadoras da indignação. Chamam monstros a estes homens e mulheres que tanto têm de genial como de censurável.

Neil Gaiman é o caso mais recente. O escritor de culto foi acusado por nove mulheres de dominação e subjugação sem negociação prévia, humilhação e violência, envolvendo urina e fezes. Começou como uma revelação num podcast e continuou com uma investigação pela revista New Yorker.

Outro caso recente é o de P. Diddy. O rapper e produtor foi acusado de extorsão, tráfico sexual e transporte para prostituição. As suas festas eram cobiçadas na indústria do entretenimento. Justin Bieber, Mariah Carey, Jennifer Lopez eram alguns dos convidados de luxo. Nesses eventos, homens e mulheres dizem ter sido coagidos ou forçados a fazer sexo.

São dois exemplos atuais, mas não únicos. A clivagem entre génio e crime recua décadas.

Há uma pergunta que emerge na mente do fã: Poderei continuar a gostar da obra do artista, depois de saber da sua conduta? O sentimento de culpa insinua-se até ser indisfarçável. É sobre este dilema que Claire Dederer (Seattle, 1967) dedica a sua análise em Monstros – o dilema de uma fã (Quetzal).

A fruição dos filmes de Roman Polansky, apesar da violação de uma menor, ou de Woody Allen, após as acusações de infidelidade e misoginia, poderão ser feitas sem peso na consciência? O realizador francês levou Samantha Gailey para casa do amigo Jack Nicholson. De seguida, deu-lhe um quaalude, incentivou-a a despir-se e a entrar no jacúzi. Quando ela saiu e se sentou no sofá, penetrou-a no ânus e ejaculou. Woody Allen dormiu com Soon-Yi, filha da sua companheira Mia Farrow. A primeira vez que houve envolvência sexual, Soon-Yi era aluna de liceu ou caloira na faculdade. E poderíamos falar de Bill Cosby, Norman Mailer, Sid Vicious, Richard Wagner, entre muitos outros.

“Como separamos o criador da obra criada? Será um esquecimento deliberado, quando decidimos ouvir, por exemplo, o ciclo do Anel de Wagner? (Esquecer é mais fácil para uns do que para outros; a obra de Wagner raras vezes foi tocada em Israel desde 1938.) Ou acreditamos que o génio tem direito a uma imunidade especial, um livre-trânsito comportamental? E como varia a nossa resposta de situação para situação?”, interroga-se Claire Dederer.

Queiramos ou não, as monstruosidades deixam a obra maculada, mesmo que seja em retrospetiva. Não dançamos da mesma forma, nem usufruímos das imagens de igual maneira, quando a negrura da biografia enevoa a perspetiva do fã. Não quer isto dizer que haja coerência nas reacções. Poderemos dançar ao som de Michael Jackson, mas ficarmos atados pela moral, quando P. Diddy ou R. Kelly debitam os primeiros acordes. Podemos venerar a obra de Woody Allen, mas rejeitar a obra de Polansky. A reação não é lógica; é emocional. A biografia de quem observa forma a perspetiva. Será mais fácil para um jovem da Geração Z ouvir Wagner do que um descendente de uma vítima do Holocausto; é mais fácil para quem não sofreu violência sexual perdoar Polansky do que uma vítima de pedofilia.

Por muito que os new critics norte-americanos defendam a análise da obra sem contaminação da biografia, o comum consumidor de cultura (e até críticos) tem uma relação composta por experiências próprias, emoções e ideias sobre o artista. O indivíduo leva muito de si para cada obra que consome. Até certo grau, nós somos reféns das nossas perspetivas. O pensamento começou a ser simultâneo à ação com as redes sociais. A primeira reação é não ouvir o “monstro”. Em vez de se compreender, cancela-se quem fala. Há moralização da perspetiva e ação imediata sobre quem prevarica. Para quem cancela, não interessa a qualidade do trabalho. Há acusação e sentença em simultâneo. E cala-se quem afeta. Claire Dederer deixa uma pergunta pertinente: “Mas como diabo podemos melhorar se não ouvirmos as pessoas dizerem o que está errado?”.

A cultura de cancelamento vai além da denúncia e confronto. O seu objetivo é calar. A escritora norte-americana é menos incisiva, quando concentra a sua atenção em potenciais monstras. Os nomes são escassos (Virginia Woolf, Valerie Solanas, Sylvia Plath) e os danos menores. O seu feminismo resvala para o femismo e valida um dos aspetos já falados: a reação é mais emocional do que racional. A experiência individual forma a perspetiva e as margens da moral.

Ainda assim, Monstros lança perguntas de difícil resposta e expõe as nossas incoerências, quando confrontados com a monstruosidade de quem é venerado. Além do ídolo, é o próprio fã que fica em causa. E essa é a parte mais difícil de ultrapassar.

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AUTOR(A)
Mário Rufino
Mário Rufino

Mário Rufino é professor de português língua estrangeira há 17 anos e crítico literário há nove anos.

Tem escrito crítica literária e ensaios para a revista Ler, Observador, Sábado online, P3/Público, Comunidade Cultura e Arte, entre outras publicações.
É autor do site Livrómano, onde reúne a sua crítica literária.
Fez parte da organização do Festival Literário da Madeira entre 2016 e 2018. É membro da organização do Escritaria- festival literário de Penafiel desde 2019″

Tem um filho.

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