Não sei quantas vezes é que isto aconteceu. Sem me dar conta, estava no corredor dos enlatados, a olhar para as latas que se alinhavam nas prateleiras, numa mescla de cores, sabores e texturas. O pouco movimento nos corredores adjacentes contrastava com o ritmo descompassado do meu peito. Inerte, dei por mim a contemplar aquela lata. Instintivamente, o olhar foi absorvido pelo verde do metal, enquanto o braço, num ímpeto mal controlado, a fez rodopiar entre os meus dedos. «Filetes de sardinha, sem espinha, em azeite de oliva», as tuas preferidas.
Não sei quantas vezes é que isto aconteceu. Mas, agora, que penso nisso e me sinto tentado a perceber a razão pela qual as lembranças provocam uma tormenta, daquelas que me deixam prostrado, quero acreditar que encontrarei algo que apazigue este coração, sedento de paz. A mágoa corrói. A mágoa destrói. Não quero ser uma pessoa destruída. Quero encontrar a tranquilidade que permita olhar em frente e apreciar o que me rodeia. Dizem que a vida é o que fazemos com ela, mas há inquietações que nos amarrotam a alma. E tu continuas a ser uma delas.
Devolvi a lata à prateleira, olhei para o cesto de compras, pousado a meus pés, e revi a lista mental que a minha mulher se encarregou de transmitir. Não mais do que quatro coisitas. Poderia ter escrito a lista num papel, facilitava-me a vida. Paguei a conta e saí, sempre com o cheiro das sardinhas colado à pele.
A caminho de casa, bruscamente, rodei o volante à esquerda e enveredei por um caminho estreito, em terra batida. Sabia que aquele carreiro me levaria ao lugar onde as memórias deviam estar fechadas, afastadas de intromissões na vida quotidiana. Ao fim da última subida, estaquei o carro e perdi-me na contemplação da fachada, envelhecida. Como eu. Como tu. Poderia ter entrado, se quisesse. Não o desejei. O portão, destrancado, como da última vez que o transpus, não me ofereceria resistência. As paredes, gastas e esboroadas, mostravam a infelicidade escorrida nas falhas de tinta.
Deixei que a memória me levasse até ao último dia em que vivi ali. As imagens de malas, caixas, caixinhas e toda a parafernália que assiste a uma família de quatro, intrometeram-se nos meus olhos molhados. A inquietação tomou conta de mim e a névoa toldou as alegrias vividas nos mais de cinquenta anos, naquele lugar. Nesse dia, perdi tudo. Provei o amargo sabor de me sentir órfão de pai vivo.
O som abafado do telemóvel despertou-me dos pensamentos nebulosos. No visor, o epíteto “Princesa” levou-me a atender, sem mais demoras.
— Estás quase a chegar? Tenho falta do que te pedi para terminar o jantar e já são horas…
Balbuciei desculpas apressadas e terminei a chamada. Só me apetecia desligar-me do mundo e continuar a arrastar-me no lamaçal das lembranças doloridas. Encolhi-me no assento da carrinha, única réstia de ligação ao passado de uma família desfeita.
O olhar perdido levou-me até ao bloco de notas, caído entre o banco do pendura e o travão de mão. Na ranhura por baixo do rádio, a mão tremelicante agarrou uma caneta. Escrever nunca se afigurou amigável. Contudo, as horas que a minha mulher passa entre linhas em branco e o ecrã do computador fazem-me pensar que algo de arrebatador pode existir no facto de expulsar letras para o papel, talvez permita libertar os fardos e gritar pela misericórdia da alma. Endireitei-me no lugar do condutor e voltei o olhar para a folha em branco. Revivi os momentos de mágoa, a dor mascarada nos convívios de amigos, a revolta adormecida no cheiro adocicado dos meus filhos.
Carreguei no botão gasto da rádio e a voz suave de Mariza invadiu o habitáculo. As palavras, doces, mas fortes, implodiram-me no peito: “as coisas vulgares que há na vida / não deixam saudades / só as lembranças que doem / ou fazem sorrir. Há gente que fica na história / da história da gente / e outras de quem nem o nome / lembramos ouvir…”. Recordava o teu nome, mesmo sem querer. Mariza ainda cantava quando a caneta deslizou pelo papel.
Pai
Talvez sejam as únicas (e últimas) palavras que te dirijo. Nunca consegui dizer-te o que realmente senti quando, naquele dia, apenas pedi que me ajudasses a salvar o teto sobre a cabeça dos meus filhos. Teus netos. Nunca consegui fazer-te entender o outro lado da realidade; aquela que jamais quiseste encarar. Nunca te pedi, nem o faria, para escolheres entre nós os dois, porque seria incapaz de prejudicar um filho para beneficiar outro. Preferiste sempre defender o indefensável, proteger o que não tinha proteção possível, o “coitadinho” que escolheu uma vida diferente da nossa. Cujo preço nunca carregou sozinho. Porque tu não deixaste. Porque tu sempre ajudaste a suportar. Porque eu também, arrastado, ajudei a pagar. Tantos anos andámos em círculos, às voltas, atrás de salvação para quem nunca quis ser salvo. De quem não aceitou a mão que lhe estendíamos e que a mordeu, vezes sem conta. E a mais grave foi quando atacou os meus. Isso eu não podia aceitar. Nunca. Jamais. Tornou-se insuportável manter a convivência dentro destes muros. Tomei a decisão mais custosa; nem imaginas a dificuldade em explicar a duas crianças que, tudo quanto conheciam desde que nasceram, ruíra Hoje, por uma conversa de café, soube que não perdemos a casa, contudo sou incapaz de voltar. Talvez quando as memórias da minha mãe se sobrepuserem às amargas recordações de um pai carrasco, que tanto me tirou…
O som do telemóvel voltou a trazer-me à realidade. Sorri, tristemente, enquanto me apercebia de que a caneta continuava a desenhar momentos involuntários no papel. Tive vontade de resmungar, pois muitas mais palavras haveria para dizer. Dei por mim a pensar na lata de sardinhas…
Devolvi a chamada à minha mulher. Precisava tanto ouvir a sua voz, segurar-lhe a mão e aninhá-la no meu peito. Disse-lhe que daí a cinco minutos estaria em casa. Olhei para o bloco de notas e perguntei-me o que fazer com aquele pedaço de papel. Acalmei o coração, anulei aquela memória nas palavras escritas e percebi que o mais importante era a família que construí, a força que sempre me agarrou com firmeza e me retirou da infelicidade de me sentir destruído pela fúria do vício.
Liguei o motor, sereno, fiz o veículo deslizar. Enquanto me afastava daquele local, posso jurar que vislumbrei uma luz por trás da persiana da cozinha. Num rasgo de coragem, parei junto à caixa do correio, rasguei a folha e coloquei-a lá dentro. Não sei se a lerá, nem me interessa. Arranquei, tranquilo, com o olhar fito no horizonte à minha frente. Nem por uma vez voltei a olhar para trás.
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Apaguei a luz da cozinha. Sabia que era ele. O ruído inconfundível do motor da carrinha não me deixou dúvidas. Há quase um ano que só sei dele por conversas cruzadas, no café. Deixei-me cair no sofá a olhar absorto para a televisão quase muda. Tentei minorar a má disposição que se abateu sobre mim. Não consegui evitar a raiva que consumia o peito arfante. Por coincidência, ou não, hoje almocei a última lata de sardinhas que trouxe, ainda antes de ter partido.
Regressei à memória do dia em que um camião me mostrou a mudança, ameaçada muitas vezes, mas que jamais supus concretizada. Recordei o momento em que me disse, acaloradamente, “vou-me embora, mesmo”. Ainda lhe perguntei pelo pagamento das despesas da casa, respondeu-me “não é mais um problema meu; deixei de ser o vosso criado, que só serve para as pagar e arranjar coisas estragadas”. Ainda me atirou um “estão por vossa conta” antes de me virar costas. Referia-se a mim e ao irmão, um pobre diabo a quem o vício consumiu a alma.
A névoa ensombrou o meu olhar, resignado ao destino de me ver só. Não perdemos a casa, como dizia. Balelas de quem queria que lhe entregássemos o todo. Acreditei que unia os meus filhos. Enganei-me. Quando um tudo quer e o outro apenas perde é difícil estabelecer um caminho entre tempestades opostas.
Refleti muito, nestes longos meses de calvário, em que a solidão habitou estas paredes. Queria fazê-lo compreender que eu seria o amparo do irmão até ao soar da minha última badalada.
Olhei a fotografia da minha mulher, sorria por trás do vidro empoeirado. Senti saudades de quando estava aqui, deste lado do mundo, abrindo caminho entre tormentas. Amparando as querelas. Suportando as mágoas. Mútuas.
Decidi escrever-lhe. Quem sabe o papel me ajudasse mais facilmente a libertar as palavras que a garganta teimava em calar. No louceiro da cozinha, um velho envelope esquecido foi refúgio do queixume amargurado.
Filho
Sei que a tua mãe estaria do teu lado, como sempre. Sei que estás certo, mas não te consigo dar razão.
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Duas cartas. O mesmo dia.
Duas vidas. Desunidas.
Duas perspetivas. Cruzadas.
Em busca da tranquilidade entre uma lata de sardinhas.