Floco e Gotinha

Floco e Gotinha

Lá em cima, bem no alto, onde nos dizem que fica o céu, existe uma grande cidade que está sempre em movimento, empurrada pela energia dos seus habitantes – raios de sol, trovões, brisas, ventos, gotas de chuva e flocos de neve.

            A cidade-céu tem as ruas pavimentadas com pequenos azulejos azuis, claros e puros, quase transparentes. E as nuvens são as casas dos seus habitantes, tão diferentes uns dos outros – os raios de sol são alegres e vibrantes e iluminam quem por eles passa; os trovões, barulhentos e carrancudos, podem ser muito aborrecidos nos dias em que estão mais chateados; as brisas, agradáveis com toda a gente, correm ligeiras e simpáticas; os ventos, rápidos e instáveis, podem sentir-se muito bem-dispostos ou serem verdadeiros rezingões; as gotas de chuva são molhadas e pequenas e evitam aproximar-se para não incomodarem e os flocos de neve, leves e vaidosos, adoram meter conversa e fazer novas amizades.

            Nesta cidade, que fica lá em cima, no céu, todos convivem e muita coisa se passa, sendo raro que nós cá em baixo, na terra, percebamos o que está a acontecer. No entanto, por vezes, é difícil ignorar que um trovão e um vento rabugento se zangaram, porque dessa zanga resulta uma tempestade que arrasta gotas de chuva ou flocos de neve até nós. Outras vezes, podemos perceber que um raio de sol e uma brisa se juntaram para dançar, quando o dia está luminoso e agradável, e conseguimos sentir cá em baixo essa dança entre o calor do sol e a frescura da brisa. E é sempre mágico quando uma gota de chuva e um raio de sol se cruzam, resultando desse encontro um lindo arco-íris. Por muito surpreendente que seja, esta cidade-céu parece-se muito com as cidades-terra. Criam-se amizades, brincadeiras, amores, zangas, birras… Há de tudo.

            Na cidade-céu havia um floco de neve especialmente falador. Adorava passear e caminhar sobre os ladrilhos azuis, que o deixavam ver o castanho e verde da terra bem abaixo. Conversava com todos os que lhe respondessem e, assim, tinha muitos amigos e ainda mais conhecidos.

            Aquele era um dia brilhante. Os trovões descansavam depois da tempestade de há duas semanas, e os ventos andavam em maré de boa disposição. Os raios de sol aproveitavam para mostrar todo o seu esplendor e era a altura ideal para espreitar as cores lá debaixo. O Floco procurava sempre um local diferente, confortável, que lhe permitisse espiar as curvas da superfície terrestre. Olhava deliciado as copas das árvores altas e densas que passavam sob os seus pés, quando ouviu um suspiro. Estava pouca gente na rua, e não lhe pareceu que o suspiro tivesse vindo da brisa que acabara de entrar na nuvem à sua frente. Devagar, foi até à nuvem escura que ficava na curva e espiou quem seria. Uma pequena gota de chuva, transparente, brilhava com o reflexo dos raios que ao fundo se preparavam para aquecer a tarde. Parada em frente à porta da nuvem que talvez fosse a sua casa, a Gotinha olhava para baixo com espanto, tal como o Floco estava a fazer. Era tão bonita, a Gotinha, ali quieta, suspirando pela paisagem que também deixava o Floco sem fôlego. Ele não resistiu:

– Olá! As árvores são muito lindas, não são? Pergunto-me se serão tão macias como parecem cá de cima.

A Gotinha não esperava ter companhia e assustou-se quando ouviu o Floco. Como todas as gotas de chuva, era bastante envergonhada e temia conhecer coisas novas. Encolheu-se e, embaraçada, não conseguiu melhor resposta do que um murmúrio. O Floco ficou encantado. Agora que pensava, não conhecia muitas gotas de chuva, eram tão tímidas que ficava difícil deixarem-se ver. E aquela Gotinha era muito bela…

– Não tenhas medo. Chamo-me Floco. – Riu embaraçado. – Eu sei que não é um nome muito original, mas pelo menos identifica-me com muita eficácia.

A Gotinha achou engraçado aquele floco de neve, que se chamava Floco, e que não parecia ter medo dela. Os seus pais sempre lhe disseram que deveria ter muito cuidado com estranhos: as gotas de chuva são muito molhadas e, ao aproximarem-se, facilmente poderiam encharcar outros, o que seria com certeza desagradável. Poderia até desencadear um conjunto de insultos! Mas o Floco não parecia preocupado e sorria-lhe, incentivando-a a falar.

– Olá. O meu nome é Gotinha… – Não tinha muito jeito para aquilo. Não sabia bem que mais dizer, pelo que achou seguro voltar à conversa sobre árvores. – Não sei se as árvores serão macias, têm uns ramos que parecem bem pontiagudos.

A Gotinha tinha uma voz baixa, mas clara e melodiosa, como se cantasse suavemente enquanto falava. O Floco ficou ainda mais encantado.

– Tens razão, talvez não sejam macias. Mas a erva será macia, com certeza. É tão leve que baila com as brisas, quando elas vão lá abaixo brincar, só pode ser macia!

– Concordo. Ouvi um dia uma brisa contar a um trovão que a erva alta é muito flexível e que é divertidíssimo fazê-la rodopiar. O mais engraçado é que o trovão respondeu que, com ele, a erva não rodopiava, caía e ficava achatada e mortiça, como se tivesse medo. Acho que não acreditou na brisa.

Sem se darem conta, o Floco e a Gotinha conversaram por muito tempo. Ambos adoravam espiar a terra, imaginando como seria descer até lá. Ao contrário dos ventos, das brisas e dos raios e trovões, flocos e gotas poderiam fazer essa viagem, mas não conseguiriam retornar, pelo menos não imediatamente, e poderiam não retornar sob a mesma forma. Assim, muitos temiam perder-se e recusavam descer da cidade-céu. Não era o caso deles. Floco e Gotinha sonhavam descer e ver de perto tudo o que os intrigava e apaixonava.

            O dia terminava, os raios de sol recolhiam e as estrelas (criaturas estranhas e mágicas) começavam a surgir no horizonte. Floco e Gotinha despediram-se, mas não sem antes combinarem novo encontro. E não foi só um. Depois da primeira conversa, viram-se quase todos os dias, nos claros e luminosos e nos escuros e tempestuosos. A cada novo dia gostavam mais um do outro, partilhavam sonhos, paixões e medos. O Floco amava a transparência e melodia da Gotinha, que lhe parecia cada vez mais bonita, e a Gotinha apaixonou-se por aquele floco entusiasta, capaz de ver sempre o lado mais feliz de cada situação. E assim, sem perceberem, foram planeando aos poucos aquela que seria a viagem das suas vidas – a descida até à terra – que já só imaginavam fazer juntos. Os planos eram muitos, todos belos e empolgantes. Tanto falaram sobre o projeto que este se tornou inevitável. Era chegada a altura de tornarem o sonho realidade. As famílias deveriam ser informadas e depois seria esperar pela próxima erupção de trovões rabugentos. Sentiam os ventos inquietos e sabiam que não tardaria até à próxima tempestade.

            De mãos dadas, Floco e Gotinha contaram os seus planos a cada uma das famílias. Não esperavam a reação que receberam, pois nenhuma das famílias parecia tranquila com o plano traçado.

– Tu és um floco de neve! Se te aproximares muito das gotas, derretes! Desapareces! Como queres tu conhecer a terra se deixares de existir? – diziam os flocos de neve.

– Mas Gotinha, ele é feito de neve! Já pensaste que podes congelar? Ficar completamente imóvel? Não serás capaz de criar uma poça, nem de te unires a um ribeiro! Estarás congelada! – eram os medos das gotas de chuva.

Ficaram tristes. Depois de tanto tempo próximos, estavam tão apaixonados que não parecia possível que os outros imaginassem algum perigo. Eles eram perfeitos juntos!

Ninguém os impediu de fazerem a grande viagem. Era do conhecimento geral que viajar até à terra seria um destino possível para qualquer floco ou gota. Depois dos avisos e medos, Gotinha e Floco não imaginavam descer um sem o outro. Era o sonho dos dois!

            Chegou uma manhã carregada. Sobrevoavam o Polo Norte, tão branco e azul como o céu. Os trovões estavam impossíveis e os ventos decidiram aborrecê-los tanto que conseguiram começar uma tempestade. E que tempestade! Tamanha era a cólera dos trovões, que nem anunciaram o seu início. De mãos dadas, Floco e Gotinha saltaram, juntos, para o centro da discussão. E dançaram. Loucos de alegria, bailaram agarradinhos, carregados pela fúria dos ventos, ao som dos resmungos de trovões, enquanto viam o céu ficar cada vez mais longe. Abraçaram-se felizes e, embalados pelo temporal, fundiram-se.

            Chegaram à terra como um só, na forma de um belo pingente de gelo com formato de gota, que aterrou sereno na superfície polar. Abriu os olhos e viu o verde da mata densa ao fundo, o branco do gelo compacto, macio, onde vários flocos brincalhões se acumulavam, e o azul profundo do oceano mesmo ao lado, onde gotas nadavam eufóricas. Estava na terra! E era bela, como era bela! Rodeado de tantos amigos, neste novo mundo por explorar, o pingente soube que estava em casa.  

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AUTOR(A)
Patrícia Lameida
Patrícia Lameida

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a procurar novamente esta paixão mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns deles publicados. Retoma a escrita sob a tutela de Analita Alves dos Santos, sendo a sua participação na antologia «Não vão os lobos voltar» o primeiro passo desta aventura.

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