Saiu da cidade quando o Sol ainda estava escondido atrás de algumas nuvens. O ar fresco da manhã entrava pela janela entreaberta do carro. Inspirou com força, enquanto se encaminhava para a autoestrada. No assento do pendura, dentro da caixa transportadora, o gato miou.
– Eu sei. São só umas horas. Daqui a pouco dou-te um petisco – disse ela, tirando uma mão do volante para tentar acariciá-lo através da grade da caixa. Ele recuou e virou-se de costas.
O trânsito foi diminuindo ao mesmo ritmo a que a distância em relação à cidade aumentava. Por cada quilómetro que o mostrador marcava a pressão no seu peito parecia diminuir. A vibração do carro tinha um efeito calmante, quase como se a sensação emanasse de dentro dela, através das pontas dos dedos.
Na mente conseguia ver a casa, tão nítida como se tivesse lá estado ontem: após subir o empedrado de acesso ao terreno surgiam paredes em tom de rosa velho, cobertas em alguns lados por trepadeiras teimosas. No topo do edifício, a janela do sótão observava quem chegava como um olho sábio, oráculo, do qual nada nem ninguém se podia esconder. Em torno da casa havia sempre uma sensação de sombra e frescura, mesmo que o Sol brilhasse alto no céu. Era inquietante; era perfeita.
A casa teve outros proprietários, numa vida anterior, que nunca a tinham habitado. Os avós tinham-na comprado e transformado, acrescentado divisões, e ganhara não só tamanho como solidez. Tentar imaginá-la antes disso era difícil, como se fosse, de alguma forma, transparente, ou talvez ainda não tivesse completado o processo de se materializar nesta realidade. Uma casa só existe por completo quando cumpre a função de abrigar vida.
Desocupada há vários anos, desde a morte dos avós, acabara por cair no esquecimento, pelo menos para ela. Ir lá implicava uma viagem longa e a vida e o trabalho acabavam por se intrometer nos planos. Mas, nos últimos meses, a ideia de voltar surgira com mais frequência no seu pensamento. Dava por si a recordar momentos passados, cristalizados como fotografias: a noite de Natal com a casa cheia de gente, em que dormira num colchão debaixo da grande mesa da sala, embalada pelo aroma a canela e madeira; vezes em que parara à porta da cave, as mãos a sentir a rugosidade da parede, o ar frio e um ligeiro cheiro a humidade, que escapava por debaixo da porta; o dia em que escorregara e caíra no jardim, ferindo o joelho, e depois de a avó fazer um curativo passara o resto do dia a fingir ser um pirata com uma perna de pau, por não conseguir andar normalmente.
Mais recentemente, sonhava quase todas as noites com a casa. A maior parte das vezes o sonho não era muito diferente daquele dia, a viagem e a chegada iminente, mas algumas noites sonhava estar no interior, numa versão a preto e branco, como se nevoeiro se tivesse infiltrado no sono e os movimentos se tornassem tão lentos que passaria uma eternidade até conseguir chegar à porta da rua.
O gato despertou-a do transe com um miado.
– Quando chegarmos, se te portares bem, deixo-te passear um pouco na rua. Parece-te bem?
O gato miou novamente.
– Não tens uma floresta inteira à disposição, mas há bastante mais espaço do que tinhas antes. Não podes é fugir, porque nunca se sabe se algum cão vadio te apanha. Ou coisa pior.
Na rádio, o noticiário informava sobre um incêndio de grandes dimensões que deflagrava num prédio no centro da cidade; as recentes previsões económicas das autoridades para a segunda metade do ano; e a grande expectativa em torno da final do campeonato de futebol. Sintonizou noutra estação, abriu um pouco mais a janela, e deixou-se envolver pela música e sensação do vento que batia na cara.
A última visita à casa fora pouco depois do falecimento do avô, para acabar de organizar roupas e papéis. A quantidade de tralha que os mortos deixam aos vivos é assustadora, pensou na altura. Guardou alguns objetos para si, como o relógio de pulso do avô e meia-dúzia de peças de roupa, mas o restante foi encaixotado para ser levado para doação. Não fazia sentido guardar coisas que ninguém iria usar.
Ainda pensou em contratar alguém para tratar da fechadura da cave, da qual o avô perdera a chave há anos, porém, havia demasiadas tarefas para tratar em pouco tempo. Carregou o carro com o que conseguiu e deixou a casa para trás, pensando regressar poucas semanas depois. Tinham passado três anos.
Decidiu sair da autoestrada e fazer o resto da viagem pelas estradas nacionais. Apreciava quando a paisagem era feita de pequenas vilas, campos de cultivo, o campanário de uma igreja visível lá ao longe.
Do Sol não havia sinal, preso atrás de uma parede de nuvens cada vez mais escura. Colocou a mão do lado de fora da janela e conseguiu sentir a mudança no ar, a humidade que se adensava e o tornava mais pesado.
Ainda faltava algum tempo de viagem, decidiu abastecer-se. Parou numa vila que teria pouco mais de trinta casas a ladear a estrada, em posições desenhadas por uma mão invisível. A meio do casario via-se uma loja, híbrido de café e mercearia, o toldo amarelo desbotado sobre a fachada caiada. Sentados do lado de fora estavam dois homens, de idade indefinível, um deles embalava um cigarro que já ardera quase até ao filtro, esquecido.
Saiu do carro e, inclinando-se novamente lá para dentro, falou com o gato:
– Não demoro. Tenta não ser demasiado dramático, para não pensarem que te deixo a morrer de fome.
Recebeu em troca um olhar desinteressado através de pálpebras semicerradas.
Passou pelos dois homens à entrada do café com um leve aceno de cabeça, e demorou-se uns segundos à porta, à espera que os olhos se habituassem ao espaço escuro. Lá dentro, iluminados por uma lâmpada fluorescente, estavam mais três homens, um deles atrás do balcão. Do lado oposto ao balcão viam-se prateleiras com bolachas, latas de conserva, refrigerantes e vinho, e produtos de limpeza. A ordem de distribuição parecia aleatória.
– Bom dia.
Em resposta obteve apenas alguns murmúrios.
Enquanto se aproximava das prateleiras e escolhia o que queria levar, sentiu olhares acompanharem os seus passos. Pegou em duas garrafas de água e alguns pacotes de bolachas, e seguiu para o balcão. Pelo canto do olho viu que um dos homens que guardava a entrada estava debruçado na cadeira, observando-a. Pousou as coisas no balcão e perguntou se podia utilizar a casa de banho. O funcionário pareceu confuso, olhando para o ar em redor da cabeça dela.
– Ah… sim, é ali aquela porta.
A casa de banho, que era também armazém de produtos e arrecadação, tinha ainda menos iluminação. No teto, uma lâmpada amarela coberta de pó cumpria a função, mas engasgava-se de poucos em poucos segundos.
As vozes calaram-se no momento em que abriu a porta da casa de banho. Tirou uma nota do bolso, recebeu o troco e saiu, encaminhando-se para o carro, enquanto caiam as primeiras gotas de chuva.
– Ainda dizem que as pessoas são mais simpáticas nas aldeias – murmurou para si própria.
Ligou o motor e regressou à estrada, vendo desenhar-se no céu, ao longe, o trajeto branco de um relâmpago. A chuva tornou-se mais forte, vibrando contra o tejadilho num ritmo musical. A estrada foi-se tornando mais estreita e mais sinuosa, sinal de que estava no caminho certo.
Em miúda adorava aquela viagem, parecia quase a passagem para outra dimensão. Tudo mudava durante aquelas horas: as cores tornavam-se mais intensas, os cheiros mais ácidos e adocicados, os sons mais graves. Em determinado momento passavam debaixo de uma frondosa zona de árvores e, quando emergiam do outro lado, era como se tivessem chegado a outro planeta, outro mundo, em que as paisagens tinham textura.
A chuva tornara-se torrencial e, talvez por isso, ou pelo tempo que passara e que lhe desfigurara as memórias, só se apercebeu que tinha chegado ao destino quando os faróis do carro iluminaram o muro e o portão. A imagem à sua frente deixou-a uns segundos sem reação.
As trepadeiras que forravam uma das paredes tinham crescido descontroladamente, avançando pelo telhado e afogando a casa em folhas verde-escuro. As árvores que ladeavam o empedrado estavam enormes, densas, com os ramos pendurados, formando cortinas negras com a chuva que caía. Os espaços de terreno que não se achavam cobertos pelas lajes de pedra eram um mar de ervas, arbustos, flores selvagens e grandes tufos de urtigas. A casa estava rodeada pela natureza em ebulição, mas adormecida, aguardando serenamente.
– Afinal até tens uma espécie de floresta para ti – disse, olhando de lado para o gato, que por esta altura miava bem alto.
Abriu com alguma dificuldade o cadeado que trancava o portão da entrada, e estacionou o carro. Quando a chuva acalmasse levaria as malas, para já bastava conseguir chegar com o gato.
A fechadura precisou de alguma pressão para ceder e teve de encostar o ombro à porta para fazer uso do seu próprio peso. No momento em que a porta se abriu foi atingida por uma mistura de cheiros: o de mofo, que já sabia que iria encontrar, mas também de madeira, e de algo mais doce e enjoativo, que não conseguiu identificar de imediato. Ficou uns segundos parada debaixo da ombreira da porta, ouvindo os ruídos ténues da casa, que quase pareciam o som de ar a ser sorvido, enchendo lentamente os pulmões nas fundações do edifício. Silenciosa, adormecida, a casa respirava.
Empurrou com o pé a caixa do gato, que miava furiosamente, e apalpou as paredes às cegas à procura de interruptores. Quando encontrou um, a lâmpada mais próxima de si piscou e apagou-se logo depois de acender. Mas a segunda, do outro lado do corredor da entrada, ganhou vida e, com esforço, manteve-se acesa. O chão e as paredes à sua volta iluminaram-se levemente, mostrando uma espessa camada de pó, uma boa quantidade de teias de aranha e um móvel tapado por um lençol velho. Lembrava-se daquele móvel, um aparador estreito com espelho embutido, que costumava estar ocupado por bibelôs e objetos de pouca utilidade. Retirou o lençol e o espelho devolveu-lhe uma imagem turva.
Quando olhou com mais atenção para o espelho, reparou que tinha o cabelo do lado esquerdo da cabeça queimado, formando pequenos caracóis rebeldes que despontavam em direções contrárias. Tentou achatar os cabelos com a mão molhada de chuva, sem sucesso, enquanto pensava que nem se tinha apercebido que uma fagulha a tinha atingido quando, naquela manhã, pegara fogo à sua própria casa.
À sua esquerda, para lá de outra porta, a respiração da casa parecia mais intensa. No chão, dentro da caixa, o gato já não miava.