Aos meus olhos, sempre foste a melhor. Conhecia as linhas que costuravam as tuas mãos e o cheiro a sabão azul e branco da tua roupa. Fazias como ninguém filhoses de abóbora, tinhas medo da trovoada, e a tua gargalhada ouvia-se num raio de demasiados quilómetros. Andavas de muletas porque a tua distração te fez cair vezes de mais, que o digam os balcões. Fechavas o rosto quando as conversas se desencaminhavam, assim como alargavas o sorriso em satisfação.
Daquele dia tenho memórias esbatidas. Estavas rodeada por muita gente. Ouviam-se gritos e conversas despropositadas. Pela primeira vez, parecias não te importar com o rebuliço. Reflectias em silêncio, ausente de ti. As pessoas procuravam-me para me dizer coisas que não entendia e abraçavam-me sem permissão.
Ninguém me explicou que a tua ausência era irreversível. Só percebi isso quando não telefonaste no meu aniversário. Nesse mesmo dia, dirigi as minhas orações a Deus. Pedi a tua imortalidade até à exaustão. Revoltei-me, recusando a tua viagem.
Tornei a ver-te dias mais tarde. Primeiro, pouco nítida, a passar apressada entre divisões. Sem muletas. Depois, mais e mais focada. De roupa cinzenta e de avental posto, estavas ali mesmo. Assumi que as minhas preces tinham sido atendidas, mas pedir que ficasses custou-me todas as lembranças. Esqueci-me da tua voz, do aroma da tua colónia e do doce calor do teu colo. Durante anos, permiti que circulasses calada e indiferente, cheirando a coisa nenhuma e emanando um frio que não passava.
Demorei-me a reverter esta escolha. Mas hoje te digo:
«Podes ir, avó; vem buscar-me mais tarde.»
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945