Autor(a):

Laura Vasques de Sousa

Interlúdio

Arregalei os olhos no escuro, em vão. Teria sido o ressalto de uma queda? O sonho de um sismo, talvez. Os cabelos a cobrir-me a cara, os lençóis enrolados nas pernas e as mãos perdidas, às cegas, na procura de pontos de referência.

Finalmente, encontrei a cabeceira da cama. Com estranheza, dei pela ausência da almofada. Em todo o terreno de colchão palmilhado não tivera sinais da sua localização. Guiei-me no escuro até à mesinha de cabeceira, ao pequeno candeeiro, ao fio elétrico. Com as duas mãos, percorri-o até chegar ao interruptor que, para minha desilusão, não respondeu a nenhum dos cliques consecutivos.

Apeei-me e avancei, às apalpadelas, até à sala. Atravessei-a com passos lentos e cautelosos na direção onde sabia estar a porta para a varanda. Abri-a e saí.

Os postes de iluminação da rua estavam todos apagados, apesar de o Sol ainda não ter nascido. Mas havia uma penumbra que parecia anunciar a proximidade do levantar da noite e que permitia distinguir os contornos dos edifícios e das copas das árvores.

Tudo me parecia calmo e ainda adormecido, até reparar que o chão ondulava, como se tivesse vida própria e movimentos respiratórios. Foi difícil fixar o olhar, pela escassez de luz, mas, aos poucos, os contornos de uma, de outra e de tantas outras cabeças tornaram-se nítidos. Dezenas de pessoas, talvez centenas, serpenteavam com movimentos lânguidos e, aparentemente, sem destino definido.

Voltei para dentro de casa. Os interruptores das luzes continuavam sem responder. Atravessei a sala, desta vez, de forma menos lenta e ainda menos cautelosa e dirigi-me para a cozinha. Segui apoiada pela bancada e pela intuição, até encontrar o antigo rádio a pilhas que, nesta morada, apenas exerceu funções decorativas. A ter acontecido alguma coisa, os postos de rádio poderiam estar a reportar o sucedido. Enchi-me de entusiasmo por encontrar pilhas no seu interior, mas foi fugaz. Por mais voltas que desse aos botões, o aparelho não emitia som algum.

Pela terceira vez, atravessei a sala. A meio do percurso, tropecei nos pés de uma cadeira; colisão que me fez calcular um desvio da minha rota em cerca de meio metro. Ainda não tinha recuperado o equilíbrio quando a queda aconteceu, culpa da crónica ponta levantada do tapete velho que, habitualmente, conseguia evitar sem sequer olhar para ela. Acabei por regressar à varanda com um cotovelo esfolado e a respiração a denunciar um nervosismo crescente.

Não se ouviam vozes na rua. Apenas sussurros sibilantes, que se uniam numa sinistra sinfonia. Havia mais pessoas nas varandas e nas janelas dos prédios vizinhos. Alternavam o levantar da cabeça para contemplar o céu e a troca de pequenos comentários com alguém próximo. Era aterradora e inexplicável a forma como parecia que todos falavam em segredo.

A minha vizinha do lado também estava na varanda. Rezava o terço, em silêncio e de olhos fechados, com as mãos magras e caveirosas a fazer avançar uma bolinha de cada vez. Perguntei-lhe, em surdina, se sabia o que se passava. Na ausência de resposta, inclinei-me um pouco para fora da varanda e acenei timidamente com um braço para reforçar o meu apelo. Mas ela, mais uma vez, não mostrou intenção de interromper a oração por minha causa. Fui incapaz de chamá-la em voz alta. Ninguém estava a fazê-lo em lado nenhum.

Um arrepio sacudiu-me os ombros e ouriçou-me os cabelos na parte alta da nuca. Tive vontade de gritar para chamar a atenção de alguém, uma pessoa qualquer, que me pudesse explicar o que estava a acontecer.

Atravessei a sala mais uma vez, aos tombos e encontrões. Vesti um casaco ao acaso e calcei os primeiros sapatos que me encontraram na escuridão que, por sorte, eram par um do outro.

Os elevadores não funcionavam. Desci as escadas desde o quarto andar, a correr.

A rua estava cheia de pessoas, que andavam aos ziguezagues e quase roçavam umas nas outras. À minha frente, caminhavam dois homens, vindos de direções opostas. Assumi que iam ao encontro um do outro.

— Está tudo parado.

Nada ouvi, porque nada foi dito. Apenas consegui ler as palavras ocultas de um deles, no gesticular lento e exagerado dos lábios. Não se aperceberam ou ignoraram a minha presença, e continuaram os seus caminhos que, afinal, não se chegaram a cruzar.

Decidi avançar. Perfurei a multidão rumorejante. Ao meu lado, outros dois homens segredavam entre si. Estavam tão perto e caminhavam tão lentamente que consegui ouvir parte da conversa. Diziam que não havia carros nas estradas e que os barcos estavam todos atracados. Fiz-lhes sinal com a mão, ao qual me responderam com um aceno de cabeça afirmativo, apesar do olhar desconfiado. Respeitando o comportamento social instituído naquela madrugada, avancei devagar para eliminar o escasso metro que me separava deles e sussurrei-lhes.

— Isto está assim há muito tempo?

— Isto?

— As pessoas… A noite?

— Parou.

— Parou o quê?

— Está tudo parado.

— Tudo?

— Tudo.

— Que horas são?

— O que interessa isso, agora?

Deram a conversa por terminada, retomaram a marcha e deixaram-se engolir pela leva dormente.

A penumbra mantinha-se, apesar de ter passado tempo suficiente para que o céu tivesse aberto com a chegada da manhã, assim como a vizinha do lado continuava na varanda a rezar o terço. À minha volta, as pessoas cambaleavam com os olhos semicerrados. Sentia-me a única pessoa desperta no meio de uma multidão em transe, onde os sussurros se desvaneciam e a letargia se acentuava. O coração pontapeava-me o peito e não me dava tempo de encher completamente os pulmões de ar antes de deixá-lo fugir aos tropeções.

Foi então que vi, lá mais à frente, um menino sozinho a brincar com uma bola. A multidão tinha aberto uma clareira ao seu redor. Corria e saltava, com gargalhadas contidas, mas de satisfação. Dirigi-me ao seu encontro em passo lento. As minhas pernas, cobardes, não permitiam que as movesse à medida da minha inquietação.

O menino interrompeu o jogo solitário, segurou na bola com as mãos e saudou-me com um sorriso nos lábios e nos olhos. Senti que aguardava a minha chegada e sorri-lhe de volta.

— Tu queres saber o que se passa, não é?

— Dizem que parou tudo.

— Afinal, sabes.

— Sei? Mas parou o quê?

— Tudo.

— Não percebo… Eu nem sei que horas são.

— É isso.

— Isso, o quê?

— O que não percebeste, é que isso, agora, já não interessa nada.

Inclinou a cabeça para a frente. Os olhos, que se mantiveram fixos nos meus, ganharam voracidade. O sorriso, antes afável, era agora ameaçador. Deu dois passos seguros à retaguarda e mergulhou no charco de gente cada vez mais inerte, de onde ecoou a sua gargalhada infantil.

Tentei sair de onde estava, mas não conseguia mexer-me. Alguma coisa estava a controlar-me e também o estava a fazer com os outros. Éramos centenas de pessoas inertes, no meio da rua, incluindo a vizinha do lado, cujo carrapito grisalho reconheci uns metros à frente.

De repente, o chão tremeu. Um tremor que reverberava pelas minhas pernas. As árvores e as casas começaram a mover-se rua acima, de forma síncrona de ambos os lados da estrada. Vi passar a rua inteira, enquanto o chão balançava com o compasso de um comboio sobre os carris. A escola, o mercado, a torre da igreja, até não haver mais nada à minha volta. O meu corpo desvanecia-se. O dos outros também. Transformámo-nos numa nuvem de poeira suspensa que, num ápice, se dissipou.

 

Arregalei os olhos. Todos os músculos responderam num espasmo só e fizeram os lençóis voarem para lá dos limites da cama. A respiração urgia, trôpega, contra as paredes da minha garganta. O ressalto de uma apneia prolongada? O pesadelo de uma asfixia, talvez. A luz do exterior, refletida pelas paredes, iluminava toda a casa. Provavelmente, teria amanhecido há várias horas.

Levantei-me da cama. Descalça, senti que o chão fervia. Atravessei a casa em bicos de pés, com os olhos franzidos, até chegar à varanda.

Lá fora, nada se deixava ver. Nem o céu, nem os prédios vizinhos, nem a estrada. Tudo estava ocultado por um fogo branco que, sem perceber de onde vinha, ardia em toda a parte.

Ouvi uma gargalhada, vinda da varanda da vizinha. Os feixes de luz impediam-me de manter os olhos abertos por mais que breves segundos, mas consegui vê-lo. Era ele, o rapaz da bola, debruçado sobre o parapeito. Esperava-me, com o corpo inclinado na minha direção, desafiador, e sem quaisquer sinais de cegueira.

— O que estás a fazer aí?

— Vai começar.

— Começar o quê?

— Tudo.

— Tudo o quê?

— A tua vizinha já foi.

— Para onde?

O rapaz trepou pelo gradeamento do parapeito, passou as pernas para o lado de fora e saltou. Não caiu; planou como uma águia, trespassou a bruma de luz e desapareceu.

Não tive tempo para pensar ou questionar coisa alguma. Nesse instante, senti o meu corpo ser arremessado por um vigoroso empurrão nas costas, que o fez precipitar para o vazio.

— Voa!

 

Arregalei os olhos.

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AUTOR(A)
Laura Vasques de Sousa

Nascida em Lisboa, no ano de 1978. Licenciada em Biologia Aplicada aos Recursos Animais (FCUL) e em Cardiopneumologia (ESTeSL), profissão que exerce.

Desde sempre rodeada de livros, leituras e escritas, foi apenas depois dos 40 anos que teve a lucidez de lhes fazer a vontade.

É autora do blog “Espólio” (lauravasquessousa.blogs.sapo.pt) e tem contos publicados em revistas e plataformas digitais.

Em 2023, venceu o 12º Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras com o conto “Vácuo” e ficou em 3º lugar no XXVIII Prémio Literário Hernâni Cidade com o conto “Os Pardais”.

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