Naquela primavera, fiz-me rumo a Kervilahouen, aldeia no oeste da Belle-île en Mer, a maior ilha da bretanha francesa. Viajava com a mala pesada, telas, pincéis, cores e cavalete. A viagem tinha como principal propósito captar a luz da ilha na minha tela. Trazia vestida uma camisola azul anil, tão larga que devia ser dois números acima do meu, uns jeans velhos e um lenço tie-dye ao pescoço.
No peito, ainda me atordoavam as últimas palavras de E.. Ali, a bordo do barco que une Port-Navallo a Le Palais, com os olhos atentos ao movimento do oceano, a minha memória tentava encontrar instantes de refúgio, mas por mais que tentasse, só conseguia lembrar-me da sua última voz ao telefone. Tinha, por isso, decidido isolar-me do mundo, privando-me de telefone e computador. Um verdadeiro retiro artístico e espiritual. Apenas a minha irmã saberia da morada temporária, não fosse o diabo tecê-las.
Cheguei ao porto de Le Palais, satisfeita por finalmente me encontrar frente-a-frente com aquela majestosa cidadela, repleta de charme, com a sua arquitectura bicolor tipicamente bretã, paredes brancas e telhados pretos. A contrastar, aquele porto colorido, ponto de encontro entre barcos de passeio e barcos de pesca, onde, àquela hora da tarde, por fim, encontravam a paz.
Ia hospedar-me na pensão Maurec, na parte ocidental e mais selvagem da ilha. Para lá chegar, apanhei um dos três táxis que esperavam residentes e turistas. Alguns minutos depois chegava àquela casa de três andares, de típico telhado preto e, encostada às paredes brancas, uma imensidão de fabulosas hortênsias azuis. A velar as hortências, em letras desenhadas em ferro forjado: “Auberge Maurec”.
A porta grande e pesada encontrava-se entreaberta. Começava a sentir frio e ansiava por pousar a bagagem. Resolvi entrar sem avisar. Lá dentro, o ambiente quente e aconchegado contrastava com o exterior. Era pouca a luminosidade daquele lugar, que só contava com algumas lâmpadas bruxuleantes amarelo-alaranjadas e a luz de uma lareira, quase só em brasas. Logo à entrada, um pequeno balcão de madeira, escura minuciosamente trabalhada, separava as escadas que levavam ao primeiro andar de um pequeno bistrot, onde um gira-discos fazia soar “La Javanaise”. Pousei as coisas e dirigi-me para lá.
O bistrot era todo forrado a papel florido, com cores que levavam a pensar que noutros tempos teriam sido rosa e vermelho, mas que agora fugiam para um cinzento acastanhado. Algumas mesas espalhadas pela sala. Os bancos eram forrados a tecido e as mesas de madeira, salpicadas por diferentes tons de castanho. Nas paredes, através de fuligem da lareira, consegui vislumbrar alguns quadros pintados a óleo, na sua maioria retratos de mulheres ao estilo de Toulouse-Lautrec. No bar estava Madame Maurec, mulher de estatura baixa, mas de forte presença. Usava um batom vermelho-vivo, que naquela época já se misturava com a carne dos seus lábios. Com a voz rouca e assertiva, discutia com o marido:
– És sempre a mesma coisa, estou cansada de dizer para trocares as lâmpadas fundidas!
Monsieur Maurec era um homem extremamente alto e elegante, com umas pernas tão longas que se viam do outro lado do balcão. Vestia umas calças pretas e eu só conseguia imaginar duas belas pernas de pau por baixo daquele tecido.
– Então é a menina que vem de Toulouse. Preparei-lhe o quarto no último andar, como pediu. – disse Madame Maurec, mal me viu à entrada.
Subimos as escadas de madeira que rangiam, o quarto ficava ao fundo do corredor e era o último. Havia uma simplicidade esplêndida naquele espaço que me acalmava os sentidos. Cama, cómoda, mesinha de cabeceira e cadeira de baloiço. Na parede, um espelho com flores secas à volta. A luz provinha apenas de um candeeiro a óleo sobre a cómoda. Agradeci a Madame Maurec, pousei finalmente a bagagem no chão, meti-me entre os lençóis brancos e adormeci profundamente.
Levantei-me antes de o Sol nascer. Queria chegar aos rochedos antes dele para conseguir captar os primeiros raios de luz. Tomei um duche rápido, vesti os velhos jeans, uma t-shirt branca e o casaco que tinha pertencido à minha tia-avó e sabia a abraço. Peguei no material – cavalete, tela, tintas e pincéis – e desci as escadas, lentamente, para não as fazer ranger. Àquela hora ainda não cheirava a café, mas havia um saco de pão pendurado na porta. Tirei uma mini baguete e fui comendo pelo caminho.
Os rochedos ficavam na falésia mais próxima, a uns quinhentos metros da Auberge Maurec, por isso, nem que quisesse me conseguiria perder. Pousei o cavalete, as tintas e a tela. Ainda estava escuro. Esperei deitada sobre aquela erva húmida e fria. Apertei o casaco contra o peito e fiquei a admirar o céu, enquanto a escuridão se mantinha. De olhos fixados naquela cor tão compacta e ao mesmo tempo tão fugaz, a mente fugia e questionava-me se aquela também seria a cor do céu de E.. Meditava dentro dela, ao som de um oceano bravo e suave.
Assim que o primeiro raio de luz se mostrou, levantei-me e, de olhos bem abertos, fiquei a assistir àquele espectáculo de cor: a luz que nasce tímida e depois se emancipa, erguendo-se destemida sobre o oceano e os rochedos. Afinal, havia mais de poético naquela cena do que nas suas palavras. Peguei no pincel, queria transpor aquelas cores para a tela, mas não conseguia, tinham demasiado volume, muitas ainda sem nome. Não era cião, magenta, amarelo. Era explosão de tons misturados com sensações, nuances poéticas suspiradas por um novo arco-íris que jorrava do interior da Terra. Ali fiquei, num estado catatónico, com o pincel na mão e a sentir que acabava de desaprender toda a técnica de pintura que pensava dominar.
Voltei para a pensão com a tela virgem. Nesse dia, e nos quatro que o sucederam. Talvez tivesse perdido a capacidade para distinguir as cores ou talvez o talento fosse algo que nos é concedido temporariamente e, depois, dependendo da forma como o utilizamos, é-nos mantido ou retirado. Pensava nisso enquanto entrava na pensão, com mais uma discussão dos Maurec sobre as lâmpadas fundidas em ruído de fundo. No bistrot, um homem grande e pesado, com uma barba branca que roçava o balcão, terminava o copo de whisky, dizendo:
– Ponha na conta, Madame.
Levantou-se, dirigindo-se depois à porta onde me encontrava, estática com a minha tela branca por baixo do braço. Ao passar por mim, olhou-me nos olhos e disse:
– Enquanto não compreendermos a dança dos rochedos, nunca conseguiremos captar a sua luz.
Não tive tempo de responder, não consegui sequer ter uma reacção, pela rapidez e estranheza daquele instante. Subi as escadas a matutar naquelas palavras. Como poderia ele saber? Talvez me tivesse visto, nos dias anteriores, regressar à pensão com a tela virgem, ou pudesse ter presenciado as minhas tentativas falhadas na encosta. Contudo, o que quereria dizer com a “dança dos rochedos”? Adormeci, por fim, a tentar decifrar aquela mensagem.
No dia seguinte, rumei ao mesmo lugar na encosta e esperei por um sinal que desvendasse o sentido daquelas palavras. Não conseguia perceber o que aquele homem queria dizer, e ali fiquei, uma vez mais, imóvel com a tela vazia. Depois veio a tempestade. Peguei nas coisas e corri para a pensão. Apesar da minha vontade de ficar a sentir a chuva molhar o cabelo e apagar o vulcão da memória, não queria apanhar nenhum resfriado. Mal entrei na pensão, disse Madame Maurec, com a sua voz rouca:
– Menina, chegou correio para si.
Era um envelope em formato A5 e a chuva tinha apagado a tinta mesmo na parte da identificação do remetente. Subi as escadas, entrei no quarto, e, ainda antes de despir a roupa húmida, decidi abri-lo . Lá dentro um CD com uma mensagem de E.:
Pedi à tua irmã a morada, pois não consegui esperar que voltasses para te dizer que lamento tudo aquilo que disse ao telefone. Fiz-te esta música, espero que gostes.
O meu coração disparou e o corpo fervilhou por baixo daquela roupa fria. Despi-a e preparei um banho quente. Meti-me na banheira, ainda incrédula com o que acabava de acontecer. Inclinei a cabeça, fechei os olhos e a minha mente viajou. Ali estava E. e a arte, os dois dentro de um caleidoscópio. Teria perdido o talento por sua causa? Gostaria dele a esse ponto? O caleidoscópio explodiu, abri os olhos e esbocei um sorriso disfarçado de malícia, mas que, na verdade, era eu a dar uma dentada na maçã que é o mundo. Saí da banheira, sequei-me e adormeci por cima dos lençóis. Não me lembrei de ouvir a sua música.
No dia seguinte, rumei para a encosta e, quando o primeiro raio de sol nasceu, tímido, e mergulhou naquele rochedo, algo de surpreendente aconteceu. Era como se estivesse a ver aquela luz pela primeira vez. E a luz ganhou força, com ela nasceram outras e com estas novas cores. Os rochedos ganharam vida. Nos meus ouvidos o som das ondas, de repente, misturou-se com cordas e sopranos, e os rochedos deram voltas e mais voltas, ao som daquela música que era minha. Depois deu-se a explosão de cores. Tudo ao mesmo tempo e misturado com os meus olhos lacrimejantes e a minha pele de galinha. Peguei no pincel e nas tintas e, alcoolizada pelo momento, captei aquela luz, aquelas cores, o que ouvia e o que sentia. De repente, a tela transformou-se em mim: um grito de liberdade.
Nesse dia, voltei para a pensão leve e só pensava no quão certas eram as palavras daquele homem. Procurei por ele no bistrot, para lhe contar e perguntar se tinha assistido ao mesmo. Mas, sobretudo, para lhe agradecer. Na verdade, depois daquele dia, nunca mais o tinha visto, talvez estivesse só de passagem na ilha. Assim como eu.
Fiz a mala, estava pronta para regressar à realidade. Pedi a Madame Maurec que chamasse um táxi para me levar ao porto. Despedi-me dela e do marido – que tinha finalmente trocado as lâmpadas fundidas – e perguntei, enquanto tirava o quadro da mala:
– Madame, pode dar este quadro ao homem de barba branca, que estava sentado ao balcão, no outro dia?
Ao que ela respondeu:
– Não percebo, qual homem? Há mais de um mês que a menina é a nossa única hóspede.
Aguardei uns segundos em silêncio, na esperança de que se lembrasse de alguém, alguém da ilha, não necessariamente um hóspede. Mas, percebendo que era em vão, deitei os olhos ao chão e voltei a guardar o quadro. Agradeci-lhes, a ela e ao marido, enquanto me dirigia para a saída, onde o táxi esperava.
Ao passar a porta do bistrot apercebi-me, pela primeira vez, graças àquelas lâmpadas brancas, de um retrato pendurado na parede. Ali estava, com a barba branca comprida e o olhar misterioso. Em baixo do retrato a legenda: “Claude Monet. Foi hóspede nesta pensão em outubro de 1886.”