O comboio saiu dos carris. A carruagem tombou para o lado esquerdo. Os vidros partidos das janelas irromperam pelo ar como projéteis afiados, rasgando aleatoriamente e sem compaixão, e os gritos misturaram-se com sabor a sangue na boca. Apertei-lhe a mão e puxei-a para mim. O meu corpo percebeu que não tinha utilidade mais nenhuma, senão protegê-la, queria apenas que ela saísse intocada, que me fizesse feliz por uma última vez e continuasse a respirar por nós os dois. É a herança que lhe posso deixar, o ar. Vento que percorre a terra, espuma no mar, engrandece o fogo, não tem fronteiras e é de todos e de ninguém. Mas tem de ser dela.
Não tínhamos conseguido dormir, aguardáramos longas horas no local combinado, escondidos pelo escuro da noite, acalentados pela expectativa da chegada de um contacto descrito “como um homem que vamos logo perceber que é por ele que esperamos”. Não éramos os únicos, e depressa deixou de ser um esconderijo de algumas pessoas, para ser um ponto de espera para uma pequena multidão. Ermo, com muito arvoredo e longe das luzes da cidade, era o sítio ideal para a entrada clandestina no comboio da noite, e, assim que ouvimos — só sobe quem pagar — percebemos que era o homem por quem ansiávamos. E lá foi ele recolhendo o dinheiro, sem olhar para os vultos que lhe entregavam a sua última esperança, apenas confirmando se era o valor acordado. No silêncio da escuridão, os sons do comboio anunciaram-no, tornando-se vez mais nítidos e em crescente cadência, similar às batidas do nosso coração, que era só um e alojava-se nas nossas mãos, dadas com a força da importância do momento.
A simulação paga, de uma paragem desnecessariamente necessária, foi o mote para um desenfreado ataque ao melhor lugar da carruagem daquele comboio que se queria que seguisse para uma vida melhor. Mas o comboio saiu dos carris, tombou e o calor de uma explosão verteu-se pelo chão.
O meu corpo experimentou uma estranha gravidade, tudo à roda se destruía menos eu. A minha tarefa era importante, não ia ter uma nova oportunidade para me sair bem como escudo da minha Luna. Em décimos de segundo, ouvi conversas inteiras com o meu pai, senti o cheiro do cabelo da minha mãe, e recordei a frase sussurrada do último abraço apertado à mãe de Luna — protege-a por nós os dois — disse-me. O arrastar da carruagem pelas linhas fez um chiar ensurdecedor, que teria ouvido se não estivesse atento a estas palavras e, quando a carruagem por fim parou, o silêncio súbito deixou-me estranhamente sem medo.
Abri os braços muito devagar. Única, linda, minha e a respirar. Coloquei-lhe no pulso o relógio que tinha sido do meu pai e contemplei-a. Luna abriu os olhos e apercebeu-se do caos de peças humanas misturadas como as de puzzles de diferentes caixas. Compreendeu que, fazendo parte daquele jogo estropiado, eu não conseguiria sair dali. — Atravessa o rio pelos dois — disse-lhe sem me ouvir. O deixar-me e seguir em frente seria um ato de sobrevivência que lhe retiraria o sono por muito tempo, mas tinha de a convencer de que não poderia ser de outra forma, por ela, por mim, por nós. Percebi que Luna também não ouvia bem, mas leu-me os lábios e respondeu-me com lágrimas. Fechei os olhos para que me deixasse. E no desespero caótico de crianças, mulheres e homens feridos, via-a descer a encosta, descalça, sem parar, como se a sua vida dependesse de cada passo, e senti o arder do chão nos seus pés como se fossem os meus, até chegar ao rio, que atravessou sem olhar para trás ou se calhar terei sido eu que já não a vi olhar.
***
Acordei enrolada no abraço do meu pai que me olhava deslumbrado. Esboçava um sorriso ténue e sereno e emanava uma calma celestial. Tentou, com dificuldade, entregar-me o seu relógio, do qual nunca se separava. Coloquei-o no meu pulso e nada me preparou para o que os meus olhos se confrontaram a seguir. Lembrou-me um quadro que vira com ele num museu. Dia magnífico. A minha mão não largou a dele, enquanto me indicava os nomes dos pintores, dos quadros e da história que cada um guardava, e houve um em que se deteve mais tempo, um painel enorme, pintado a óleo por um pintor espanhol, com uma dor inexplicavelmente real a sair de cada pincelada. — Luna, este espelha a dor humana feita pelos homens uns aos outros — disse com um semblante triste, no entanto, fascinado. Era esse o quadro que estava, naquele momento, à minha frente e que nunca conseguiria pintar em tela, escrever no papel, ou contá-lo a alguém, ficaria guardado no silêncio da minha tentativa de manter alguma sanidade. Teriam de ser loucos, aqueles contadores de sentimentos em pinceladas certeiras, ao desafiarem-se a contar a dor. — Atravessa o rio pelos dois. — Li-lhe nos lábios. Aquele último abraço não teve um tempo contável, demorou-se até ele fechar os olhos. Com o relógio no meu pulso, levava comigo todos os minutos vividos pela minha família, ou corria para a vida ou morriam todos comigo.
Saí por uma janela trepando pelos escombros e desci a encosta com os pés descalços na terra que queimava a cada passo que dava. Chegada ao rio, lancei-me na água gelada sem hesitar. Na outra margem, inspirei um ar de cheiro intenso e pesado, olhei para trás e uma das carruagens ardia no cimo da encosta.
***
Uma chuva miudinha entrava pela janela de onde Luna tinha conseguido sair. Acordou-me. Em câmara lenta, os meus olhos pestanejavam, com poeiras e cinza a arranharem-me as pálpebras. Vultos, luzes intermitentes, sons de fundo opacos e impercetíveis, envolviam-me como um manto que ainda assim não me aquecia. O meu corpo penava, mas eu não o acompanhava na sua dor. De alguma forma estávamos juntos, embora separados num tempo e lugar indefinido e flutuávamos entre o ser e o não saber o que se segue. Tinha a imagem da última vez que vira Luna, como um separador entre momentos de alguma lucidez e os de um sono, longo e apaziguador. A uma distância que parecia indefinida, pessoas perto de mim tocavam-me, seguravam-me e tentavam aquecer-me. Voltei a acordar. Foi-me acontecendo por diversas vezes, sem tomar noção do tempo ou lugar, até me aperceber numa cama, deitado. O meu corpo encontrou-me e doía-me com ele, apesar de não saber onde estavam os pés e as mãos, de não ter fome ou sede e continuar com muito frio. Acordei mais uma vez e reparei numa cruz vermelha num fundo branco. Os sons já se faziam ouvir. Tentei falar com quem se aproximou e me colocou a mão na testa. — Luna, Luna — balbuciei em delírio. Acordei novamente, percebi que colocavam uma cama com rodas junto da minha. Senti a minha mão esquerda, como há muito não sentia. Pulsava e estava quente. Acordou-me. Na cama ao meu lado vi os pés ligados de uma criança. A sua mão abraçava a minha e o seu pulso trazia o meu relógio. Estremeci. — Luna, minha linda Luna!